quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Pesadelo


Levantou-se, um belo dia, assustadíssima de sua cama. Viu os fios de luz penetrando as frestas da janela, o lençol jogado displicentemente no carpete amadeirado de seu quarto e, em um lampejo fugaz, feraz, teve a impressão de não ser a primeira nem a última vez que aquilo acontecia.

Suava frio, suava rios, e o suor se confundia a lágrimas que lhe caíam langorosamente dos olhos profundos  olhos que eram mundos proibidos e misteriosos, apesar da harmoniosa transparência que deles se depreendia. Sonhara, a menina, que já era senhora: casara-se na comarca tal, distante milhas e mares de seu quintal, em data desconhecida e, ao que dizem, despida. Não teve vestido de noiva. Lua-de-mel, se houve, foi pintura esboçada em algum mágico pincel, que do leito nupcial uma só recordação não existia. Aliança, isso sim havia, e era feia, torta, morna, mais parecendo uma lasca de bigorna.

Ela olhava para o dedo e não sabia de onde vinha aquele anel, tampouco reconhecia o céu, onde as estrelas, em vez de brilhar, piscavam vermelho e amarelo, como se o firmamento todo já estivesse ocupado por estacionamentos e edifícios de cem mil andares, e aos pares se chocassem, pelo ar, aeronaves e andorinhas. Neste mundo estranho, ela vivia uma vida que não era a sua, em um corpo que depois foi perceber também não ser o seu. Tinha contornos distintos, alguns mais belos, outros mais brandos todos, porém, diferentes de sua beleza fina, feminina, a que ela mesma não atinava, às vezes, mas que era sublime, encantadora. Mesmo o homem que ela deveria chamar de "meu" não era seu, nem tinha um nome que pudesse se chamar. Ou melhor, tinha, mas ela não sabia, nem nunca saberia, que não se permitiria a uma esposa submissa a premissa do questionamento.

Tinha filhos que não haviam bebido o leite do seu peito, nem lhe sorrido o primeiro sorriso desdentado, desengonçado, nem lhe roubado noites em claro, nem desvendado-a pelo faro. O mais velho, inclusive, parecia esconder um rabo atrás da blusa. Não surpreendia, aliás, se chegasse mesmo a ser um jacaré posto de pé, como a irmã um filhote de garnizé. Feita mãe órfã, não combinava, simplesmente, com eles, muito menos pelo sangue que pelo desespero de dar com o tempero sem ter provado da iguaria.

As ruas tomavam o lugar das calçadas, enquanto as fachadas erguiam-se no interior das construções  que não tinham portões, só porões. As prisões, em vez de delinquentes, trancafiavam pessoas contentes. A ordem estabelecida exigia, sob pena capital, que a gente fosse entristecida, ou andaria marginal. Sal, açúcar e limão eram artigos fora de mão  além de estranho, esse mundo era insosso. Era carne de pescoço. Esboço de pesadelo no fundo do poço do petróleo iraquiano.

Levantou-se um belo dia e, assustadíssima, correu de pés descalços pela casa, a sentir o piso frio de ardósia e de poeira, que então não era sujeira. Abriu os vidros, as portas, as cortinas, as agendas, e saiu a caminhar, de camisola, disposta a encerrar quaisquer contendas. Tinha 19 anos e era linda, bem-vinda em todo canto, cheia de vida e valor, e de amor. Tinha um namorado que lhe fazia surpresas e caretas, que lhe ninava as noites tossidas, que lhe inventava carícias medidas, que lhe sacava flores da manga do paletó, que era dela e só. Tinha pais que não haveria como querê-la mais, carinhosos, pacientes, confidentes. Tinha dons surpreendentes e batons de cores diferentes. Tinha, enfim, muito mais que o destino em suas mãos. Tinha o presente, mais que vibrante e desejoso de ser permanente, e em caráter urgente uma única medida.

Tinha a vida...