sábado, 11 de outubro de 2008

Hoje


Hoje, ficou para trás o eco de uma porta para sempre fechada. Ficou para trás a poeira na estrada. Ficou a estrada, o extrato, o estribilho. Anos mais velho, ficou o filho. Triste e opaco, seu brilho.

Hoje, ficou para trás a coragem do exílio. Bateu o medo, logo cedo. Não cedo, mas também não insisto. Ficou para trás o imprevisto. O improvável. O abominável temor de não dar passo à frente. Ficou um pedaço da gente maior que o inteiro da gente. A essência dormente. O grito latente.

Hoje, ficou para trás mais do que se queria, menos que se dizia. Ficou sem terminar, a poesia. Ficou a alegria, a autarquia, a agonia. A ambrosia. Ficou tonta, a fantasia. Atonitamente afônica. Ficou a desilusão crônica com a passagem do tempo, que mais empata que desata, mais aperta que liberta, mais assassina que ensina. Ficou a sina a que se destina o enredo. Ficou por se contar o segredo.

Hoje, ficou para trás a rosa que não te dei, e agora nem sei mais se um dia poderei. Ficou o desejo de romper o céu. Ficou a marca de tinta no papel. Ficou o sonho à deriva. Espero que sobreviva. Ficou para sempre um nó no peito. Do outro lado da janela, ficou sem jeito a lembrança da donzela. De todas, a mais bela. Ficou quieta, a querela. Ficou dela alguma coisa em mim, enfim.

Hoje, ficou para trás a surpresa. A silhueta de um corpo feminino. Um perfume fino. Um desalinho. Ficou a nota de uma sinfonia que não vai tocar. Ficou no ar a dúvida, a dívida, a dádiva. Díspares rastros. A luz de distantes astros, destoantes estros, discordantes fachos. Ficou o fogo dos cabelos na cantiga.

Hoje, ficou para trás muito mais. Ficou um X onde enterraram o tesouro. Nos olhos de ouro da menina, ficou confessa uma promessa. Ficou o reflexo de um passarinho - e seus pulinhos - na piscina cristalina de minh'alma. Ficaram, lado a lado, calma e arrebatamento, causa e movimento, crime e julgamento. Ficou o barulho do vento soprando a nossa canção. Pelo sim, pelo não, ficou um vão no véu do tempo. Ficou imóvel, o tempo.

Hoje ficou para trás. Nunca mais o encontrarás.

Hoje, sempre, um mesmo dia. Um novo dia.

Hoje, uma folia que amanhã, pela manhã,

Já se respira...

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Solidão


Tenho uma família unida. Uma família feliz. Fechada na dor e aberta no amor. Tenho a necessária unidade para não cair quando estiver a oscilar. Gente boa nos extremos segurando as pontas. Fazendo tudo que é conta pra que eu possa caminhar sem medo de tropeçar. Tive e tenho sorte, muita sorte.

Estou sozinho.

Tenho amigos poucos, mas puros, presentes, pacientes. Pessoas que superam seus limites somente para me ensinar depois que também é possível superar os meus. Tenho amigos que nem conheço e que, no entanto, oram por mim toda noite. Pedem-me força, energia, calma. Rezam para que minha alma se estabeleça onde bem queira, livre de fardos e feridas, ou então que voe, apenas, e pare de sonho em sonho, embaralhando as cartas.

Estou sozinho.

Tenho colegas que ignoram minha existência e outros que, do nada, surgem, mostram seu apreço, viram-se do avesso e me envergonham de eu ainda não os ter notado. Tenho cúmplices e testemunhas que ficaram anos na sombra, à espreita, vigiando-me, e hoje combatem ferozmente entre si, determinando a que lado deve pender a balança de minha consciência. Tenho doze bilhões de olhos sobre mim.

Estou sozinho.

Tenho dívidas intermináveis com pessoas de quem corro atrás. Não as alcanço nunca mais, acho. Não tenho certeza se a dívida é com elas ou comigo mesmo. Tenho também pessoas mágicas correndo atrás de mim, mas não consigo fugir da raia em que estou correndo, nem consigo diminuir o passo. Elas também não poderão me alcançar. A maratona é eterna. Não existe linha de chegada. Dura o tempo que o tempo passar.

Estou sozinho.

Tenho paixão por duas pessoas que não combinam nem se entendem comigo. Mas, se não combinam nem se entendem, como, então, paixão? Sei lá, combinavam e se entendiam, agora não mais. Tenho amor por muitas outras, correspondido ou não. O amor é uma força mutante, sempre cabe mais no coração. Mutante e infinito. Amar é bonito. Meu amor é bonito e único, e sabe disso.

Estou sozinho.

Tenho uma música que escutava todo dia na época mais perdida da minha vida. Dias lindos e terríveis. Noites úmidas de um inverno que ficou no coração e não deixou mais a primavera florir os campos. Tempos em que eu andava distraído e tanto me fazia aonde ia a cabeça, pois tinha certeza de que chegaria ao meu destino. Tempos em que só um destino era possível. Ele não foi e, até hoje, meus olhos se enchem d'água ao ouvir a canção.

Estou sozinho.

Tenho, agora, tudo e todos de que preciso para ir em busca do que ainda me falta. Não é muito, nem é pouco, nem espero que um dia alcance a plenitude - ou perderia a graça. Tenho problemas e vazios, novos e antigos, para enfrentar e preencher. Tenho mil motivos para viver e uma pequena multidão nas arquibancadas vibrando com minhas jogadas.

Ainda assim, perdido em mim,

Estou sozinho...

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Às vezes


Às vezes, tenho certeza.
Às vezes, não.
Às vezes, nada, nada mesmo. Fico sozinho e mão nenhuma se me estende, chão nenhum se me suspende. Nada se entende. Nada me segura.

Às vezes, sinto segurança de que tudo vai mudar. Mas mudar pra quê, se está tão bom? Se está tão bom, por que, então, o desespero? Por que a saudade? Por que a dor de não ter acompanhado o ritmo daquelas pernas, que subiam e desciam as escadas correndo por toda a casa? De ter permitido o esboço de uma coisa novelesca?

Não era novelesco. Parecia-me o contrário. Tão frágil, tão real, tão acima do bem e do mal, que não tive como escapar. Aconteceu, simplesmente, como acontece do sol se pôr, do pássaro cantar, do rio correr, da onda quebrar.

Vai... Tinha, sim, alguma coisa medieval. Quase ridícula. E digo quase pra te poupar de um vexame maior (tenho pena e te gosto, sabes bem). Esse complexo de príncipe que te persegue. Essa obsessão de saber, de entender, de se proteger. É um personagem. Uma alegoria que não leva a lugar algum. Não existem mais salões. Não existem mais bilhetes. Não existem mais fugas por veredas desertas. Não entendo aonde queres chegar assim...

Nem eu. São tantas diferenças, tanta loucura destilada, tanta vergonha, que também me questiono se o que quero é isso mesmo ou se me valho desse pseudodesejo por medo de algo maior. Às vezes, tenho a sensação de que quero tudo, até a última gota do canudo. Acabo sem nada. Um único elo unindo-me ao espelho onde me veria por inteiro e aprenderia como modelar o meu cabelo.

Às vezes, o erro está no querer, não no viver. Menos ambição e mais emoção já seria um bom lema em que te fiares. Uma algema de que te libertares. Se o sentido está mesmo no outro, deixa os sentidos gritarem, então. Deixa que se assustem, se acovardem, se acostumem, se acompanhem, se amparem. Deixa depois que se reclamem, se resgatem, se revivam, se respinguem, se responsabilizem. Deixa ver o que eles dizem...

Volto para o começo: tivera me ajeitado naquele banco de madeira, meia horinha antes, não precisaria toda essa conversa. Juro que não...

Às vezes, era melhor não ter sido eu mesmo.
Era melhor ter fingido um papel, olhado pro céu e respirado fundo.
Às vezes, era melhor ter me perdido do mundo...

Dias de chuva


Os dias de chuva são escuros.
Os dias de chuva são melancólicos.
Os dias de chuva remetem a um trauma antigo, que assustou os ancestrais e demoveu os primeiros tiranos da Terra.

Os dias de chuva confrontam nossas mais cruas agonias.
Levam-nos a perambular pela casa, de um lado a outro, em busca de resposta a perguntas vãs: "Onde está o chinelo?"
"Onde está o sol?"
"Onde está este que pergunta pelo sol e os chinelos?"

Os dias de chuva questionam a autoridade que nos é imposta.
Convidam a gente a dormir, depois a sonhar, depois a embarcar por uma viagem em que tudo é permitido, tudo é possível. Anseios do passado estampam-se no vestido esvoaçante dos desejos que ainda não se consumaram. O vento bate no topo do penhasco e, embaixo, o mar quebra violentamente suas ondas. Eternamente, seus torpores.

Os dias de chuva convidam-nos a despertar. A remoer o vazio que fica do sonho. A ausência do que não existe. O temor de monstros com rosto de bichano e dentes de lobo faminto, à espreita da primeira vítima desavisada.

Os dias de chuva aprisionam os arroubos e sufocam os disparos. As balas estouram no peito e dilaceram o pouco que resta de vida. O coração bate mais por rotina que por paixão. É um sobrevivente sem perspectivas de salvamento. Acredita na superação, mas não na redenção.

Os dias de chuva lembram o que a pessoa era ontem e quem se revelou ser hoje. Acenam de longe e sussurram no ouvido uma coisa que não se entende, nem é para se entender. Confundem-nos para exercer seu domínio. Exercer seu fascínio.

Os dias de chuva são uma procura. Uma busca pelo encontro consigo. Uma busca por não se sabe quê, mas que se justifica sem precisar de argumento sólido. São um invento sórdido. Uma vingança tramada para confinar o homem e colocá-lo diante do mais trágico tormento: o próprio homem.

Os dias de chuva são pesados.
Os dias de chuva são pausados.
Os dias de chuva são pregados
na cruz suprema dos martírios.

Os dias de chuva prenunciam os dias de sol, que prenunciam os dias de chuva. Fecundam a terra e a alma. Lavam as laivas, levam as chagas. Nutrem o ciclo.

Os dias de chuva...
A vida.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Amor


Amor

Se é amor, que seja verdadeiro
E não tenha paradeiro
Dane-se a previdência
Tome-se uma providência

Se é amor, que seja em duas mãos,
Caso contrário, não.
Chame-se de outro nome
Foge daqui e some.

Se é amor, que não se esconda
No arrebate da primeira onda
Firme-se o pé na areia
Quebre-se esta cadeia.

Se é amor, que se perceba
Antes que se nos beba
Calem-se logo as vozes
Unam-se em si, ferozes.

Se é amor, que não se apague o passo
Nem se apegue ao laço
Deixem-se os temores
Rompam-se os pudores

Se é amor, que se diga de uma vez,
Enquanto ainda se tem voz.
Virem, de novo, meninos
Cumpram-se velhos destinos...

Allan - 29/09/08