quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Banco


Quando a solidão é um sólido, ela ocupa espaço e suas arestas machucam a pele.

Só que, de tanto esperar, ela se liquefaz. E a falta, outrora tenaz, por estranhas ironias, destas que a vida alinhava, preenche, ela própria, o vazio.

O frio passa, o arredio faz graça e o banco, conhecido nas praças mundiais como sonho ou fantasia, não precisa mais de gente, nem mesmo da gente, para se realizar.



segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Presente, passado


Gerações atuais denigrem gerações anteriores, jogam o passado inteiro na vala comum da obscuridade e se declaram os cabeças da vanguarda.

Prometem o paraíso na Terra, arroios de leite e de mel, utopia, movimento, novidade.

Abaixo a opressão!

Vento morno de entressafra, pergunto: haverá algo mais velho que esta tola presunção?

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Núcleo


Algumas pessoas manifestaram estranheza quando eu disse que, de todas as matérias já cursadas, na vida, como aluno, A Célula, do curso de medicina, tinha-me sido a mais marcante. Afinal, pelo próprio caráter introdutório de que se revestia, era raro que alguém se apaixonasse, de maneira fulminante, pela disciplina.

Claro que boa parte deste meu xodó pela biologia celular se deve por considerações sentimentais, atinentes ao período em si e, especialmente, aos três anos subsequentes, que me dispenso comentar, patentes que são em boa parte do que, ainda hoje, exsuda de meus textos. No entanto, mais que mitos e ilusões de um jardim perdido (tanto quanto pedido, no oratório de cada anoitecer), o que me arrebatou no estudo das células foi a semelhança de seu funcionamento com o que, sem saber, o ser humano projetou em sua magnífica obra de transformação do mundo. Os meios de transporte, as linhas de transmissão, a produção e o armazenamento de energia, a ciência da engenharia, tudo isto existe e trabalha, à perfeição, no interior de cada célula. Os mais complexos cálculos daqui de fora, que exigiram milênios de genial saber acumulado para se viabilizarem, estão resolvidos, infinitamente, dentro de nós.

Isolado pela carioteca, o núcleo, centro de inteligência, comanda a vida intracelular e a vida, como um todo. Grandes moléculas só cruzam a fronteira se reconhecidas, através de complexos de poros e sinais específicos de localização. O ambiente nuclear equivale, grosso modo, ao que de mais íntimo guardamos, como pessoas. Nosso último reduto, a que ninguém desautorizado tem acesso.

Estou certo de que, na época, não pensava assim. Com o tempo, contudo, fui percebendo que, disso também, era inevitável extrair uma clara analogia. Uma semelhança que tem a ver diretamente com a pessoa em que me tornei – entre outras razões, por haver feito parte de uma turma que, por doze semanas de sua trajetória, estudou A Célula. Uma imagem que, a rigor, mostrava-me a face do espelho de minhas buscas mais profundas: o núcleo.

Na escrita, nos relacionamentos, nas esperanças, até nos mais frustrantes desastres, o grande horizonte do meu olhar sempre foi o núcleo. Para lá das escarpas políticas, dos conflitos fundiários por cacos de vidro, das inflamatórias diversidades de astuto marketing pessoal, das absurdas máscaras necessárias para sustentar o espetáculo da convivência em sociedade, o que me importa, inspira e também dói, é o lado de lá da carioteca. Quantas noites passei, quantos suores verti, procurando, ora no escuro, ora ofuscado, esta pequena cidadela! Não para invadi-la, não para cobiçá-la, não mesmo, sequer, para lhe insinuar qualquer direito de ingresso.

Para contemplá-la, apenas. Para render tributo a sua beleza eremita. Para, se muito, passar um bilhete por baixo da porta, declinando-lhe o meu mais sincero respeito.

Os medos, os desejos, as mágoas, o amor. O poço em que todas estas forças se encontram e se enfrentam, puxando para as profundezas ou para a luz, quando não ambas. Que importa, diante disso, a cor das paredes, o tipo de pedra, o lado da rosa-dos-ventos para o qual se vira o frontispício?

O núcleo. Aceitar que eu, citoplasma, nunca poderei conhecê-lo e, ao mesmo tempo, amá-lo, como se fôssemos uma única célula. 

Porque é o que somos.

A fanática do nado peito


Pois bem, lá ela aparecia, no final da tarde, descendo furtivamente os degraus da escada, mergulhando e iniciando, como um ritual, o seu peregrino exercício.

Foi assim no primeiro, assim no segundo, assim no terceiro dia, disciplinadamente, como um trabalho essencial que necessitasse de ser entregue a um chefe misterioso, um Poseidon qualquer que, aos olhos meros dos humanos, não se tornasse jamais visível no rejunte dos azulejos.

De um lado para o outro, sem cessar, batendo a mão na borda só o tempo suficiente de virar o corpo e dar início ao novo ciclo. Ignorando os macarrões que flutuavam na superfície, chocando-se contra eles, muitas vezes, desviando-se dos demais banhistas, que, imersos em diversões de futilíssimo alcance, não compreendiam a sua quota de sacrifício pela espécie.

Sempre nadando peito, nunca outro estilo. Braçadas vigorosas, um pouco desajeitadas, às vezes, como todo o corpo, ao emergir d'água. Os olhos abertos, apesar do leve teor salgado da solução em que se deslocava.

Trinta, quarenta minutos. Na memória do observador, contudo – e por que haveria de ser diferente, se a beleza da vida está no olhar? – tempo mais, muito mais.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Piscina


As pessoas na piscina me parecem frequentemente envolvidas em uma aura que as faz mais atrativas do que em outros ambientes.

Tenho lembranças muito antigas desta premissa fundamental da minha imaginação. Desde as minhas primeiras aulas de natação, olhava admirado para colegas e professoras, que pareciam se transformar em criaturas divinais, vindas para este mundo por brechas abertas pelo cloro na estrutura do espaço-tempo, oriundas de um mundo onírico em cuja existência, tantos anos mais tarde, ainda creio sinceramente.

Assim me marcou a menina da touca azul, que dava as suas braçadas avançadas enquanto eu, recém-chegado na piscina grande, ainda me ajustava aos desafios da maior profundidade. Tão serena, tão calma era ela, que me fez compreender, muito cedo, a beleza da harmonia, a importância de certa doçura essencial no olhar, que segui buscando, vida afora, por outras raias e outras águas.

Assim me marcou muita outra gente, que me encantava no vapor e de quem, lá fora, eu lutava para reconhecer os traços, não porque fossem feios ou erráticos, mas porque não se ligavam mais ao azul da piscina, portanto a todo um conjunto de símbolos solenes de minha mitologia pessoal, ativados somente naqueles domínios. Pessoas que conheci bastante, outras que só cumprimentava, outras ainda com quem jamais consegui trocar uma palavra sequer, por razões ou emoções inúmeras.

E assim me marcaram, nos últimos dias, duas outras figuras com quem dividi as águas, embora de ambas não saiba sequer o nome.

A primeira delas chamou a atenção por ser muito bonita. Pelos padrões estéticos vigentes, talvez não viesse a ser confundida com uma modelo, pois estava longe de ser esquálida. Tinha, no entanto, um corpo perfeito, além de certo quê de celebridade. Ficou na piscina por cerca de uma hora, movendo-se vagarosamente, de um lado para o outro. Como não olhava para ninguém, dispensando-se mesmo daquela cortesia natural, comum entre hóspedes de um mesmo hotel, de se saudarem e sorrirem mutuamente, transmitia um ar de indiferente superioridade.

No dia seguinte, contudo, ao vê-la com outros familiares, a impressão mudou. Brincando com o sobrinho pequeno, transfigurou-se de tal maneira, que tive quase certeza de me haver equivocado. O que é mais que natural para quem, observando-a de longe, e não sendo, igualmente, uma pessoa das mais populares, às primeiras (e, às vezes, até oitavas) vistas, nem deveria estar a fazer esses juízos de personalidade.

Fato é que nunca saberei qual a versão real da personagem, se a que caminhava, de cara amarrada, pela piscina, ou a que se divertiu, no dia seguinte, com o risonho menino de boias amarelas. Talvez ambas, talvez nenhuma, talvez não seja, simplesmente, de minha conta, embora a inadimplente fantasia tenha criado histórias que valem por mil verdades.

Volto mais tarde para discorrer sobre a segunda figura, conquanto imagine que a ninguém interesse esta nota informativa de interrupção.