quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Voz

 
Em alguma proporção, as redes sociais deram voz pública a muitas pessoas que não a tinham, o que é algo muito interessante do ponto de vista de liberdade comunicativa. Abrem-se, sem restrições legais momentâneas, discussões de questões políticas, sociais, cívicas, culturais. Parte delas ganha, ocasionalmente, profundidade analítica admirável.
 
Ao mesmo tempo, no entanto, em que o espaço é expandido por esta ferramenta, o refinamento de seu uso parece mover-se na direção contrária. Explica-se: a rede social dá voz, as vozes não conversam, não se engajam na saudável trama de persuasão mútua que define a arte política. Querem mais. Lutam, em carreira desenfreada, para se impor umas sobre as outras, qualquer seja o custo da vitória. Agridem quando contrariadas, acusam quando preteridas, enfiam, goela abaixo da audiência, seus vocábulos incendidos.
 
Esta tentativa constante, ininterrupta e sistemática de domínio por meio das palavras não tem nada a ver com democracia. Guarda, aliás, similitudes alarmantes com processos ditatoriais os mais traiçoeiros. Porque uma ditadura, cabe lembrar, não se impinge apenas com armas, masmorras, polícias secretas. Paralelamente a esta sua face mais crua, ela se alimenta do conflito entre pessoas ditas comuns, legitimando-se como fiadora de uma ordem fictícia. Fomenta o denuncismo entre amigos, vizinhos, colegas de trabalho, e assim divide o fardo da vigilância. Monta seus aparelhos mais opressores justamente nas reentrâncias recônditas do cotidiano, a que poucos dirigem o olhar.
 
Como disse, em recente entrevista, um famoso cantor brasileiro, é possível viver a verdade pessoal, apontá-la, descrevê-la, mesmo escancará-la, sem aquele viés improfícuo e presunçoso de jogá-la na cara de quem quer que seja. É possível brigar, gritar, dar vazão a todo o inconformismo, ira e revolta porventura ebulientes no coração, sem despejá-las sobre indivíduos que, eventualmente, não compactuem do sentimento, não o entendam, até não o aprovem. É possível escrever um monólogo de vinte e quatro horas sem ser egoísta. É possível defender sem atacar, como possível, louvável, virtuoso e digno, atacar sem desrespeitar.
 
Sem esquecer que, do outro lado da tela, carne e sangue não são diferentes. E que, no afã do sonho de um mundo melhor, por vezes se sacrifica este que aqui existe. Imperfeito e iníquo, sim, mas urgentemente real.