sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Gratidão


Gratidão é um sentimento dos mais nobres, de fundas entranhas e complexas equações, embora tão simples de se expressar.

Antes, no entanto, deste domínio mais refinado das emoções, em que a razão não penetra e nem poderia fazê-lo, pois não se obriga um sentimento, há patamares úteis. Fórmulas de educação e civilidade, que vão desde o polido e econômico "obrigado", a tramas de maior colorido lexical, tais como "valeu", "tamo junto", "eh nois", passando ainda por acenos, gestos, olhares, carinhas felizes.

Mesmo na ausência calculada e convicta de sinceridade, tais palavras, símbolos e trejeitos são importantes. Nas mais diversas situações imagináveis: quando cai um objeto e alguém o recolhe, quando há uma porta e se dá passagem, quando há uma pessoa na faixa e se freia o veículo, quando se faz um convite, quando se ajuda alguém no início de um projeto que prospera, quando se deseja felicidade.

Mais que ícones de sociabilidade, trata-se, para quem assim o crê, de atitudes positivas. Um dos mais acessíveis meios de humildade e reconhecimento da existência do outro, do valor do outro: não se agradece, afinal, a si mesmo. Uma demonstração prática, e não o meloso discurso, de que, sozinhos, não somos nada.

Você que lê, você que não lê, você que boceja, chora ou sorri, tome, assim que puder, dois segundos para agradecer: um às forças em que creia ou descreia, outro a uma pessoa. Anônima ou conhecida, reincidente ou esquecida, isso é o de menos. Garanto pouquíssimas coisas na vida com este ralo discernimento humano, mas esta, sem medo, lhe asseguro: estará fazendo, de seu tempo, o mais rentável investimento.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Práxis


Escrever nada mais é que praticar a saudade que o coração "apenas" sente.

E porque a saudade não tem regras, todo escrito vale: livros, cartazes, mensagens, pequenas carinhas felizes, ecos da amorosa imaginação.

E porque a saudade bate, até o que não disse ainda ou nunca direi.

sábado, 1 de outubro de 2016

Mistérios

 
Não raro, pairam nos ares, públicos e privados, clamores por amor, gentileza, tolerância, compreensão, mundo melhor.
 
No ponto atual, acho que o mínimo do mínimo de respeito já seria um suspiro profundo de paz. Como estão as coisas, milita-se hoje muito mais perto dos tratores que dos tratos. Causas as mais libertárias revestem consequências que flertam, nas implicações práticas de seus programas, com atrocidades totais. Coletividades apresentam-se com um egoísmo tal, que a própria Contradição, fosse uma deusa, coraria.
 
Constituísse a política o único nó; fossem os partidos, os governantes, os candidatos, as assembleias; fossem, mesmo, os sistemas econômicos, todos aqueles -ismos que parecem explicar tudo, exceto o fato de que não existem além da imaginação teórica de quem os determina, seria mais fácil. No fundo, é a sua função: tornar mais fácil o que é complexo, o que dança à beira do precipício.

Problema é que vai além. É também, e muito, o que vem de dentro. O que se dá de pessoa a pessoa, de casa a casa. O valor que se atribui a quem está perto, a quem passa do lado, a quem prestou uma ajuda e merece gratidão, a quem vai cruzar uma porta e não quer ser derrubado só porque deu o primeiro passo. Noções elementares de dignidade, reconhecimento alheio e até física, que não podem, em nenhuma hipótese, submeter-se à vocação autoritária do próprio umbigo, por mais belo que se intitule o que ele aponta.
 
O entendimento de que as carnes são as mesmas, os órgãos, o sangue, as correntes elétricas, e que, se isso não é o bastante para tratar bem uma pessoa no singular, não adianta nada ter, na boca, o melhor discurso para elas no plural. Mesmo porque, a vida, em seus mistérios, em seus jogos de imagem e reflexo, dá, por vezes, o prodígio ao medíocre, a doçura ao truculento, as mãos ao pé para subir e olhar sobre os tapumes.
 

domingo, 18 de setembro de 2016

Caçadores de hipocrisia

 
Se você pegar os candidatos a prefeito e vereador, descobrirá, em todos eles, uma série de hipocrisias. Nem carece grande esforço intelectual. Elas já vêm prontas para consumo.

Diz-se mais: se você apontar os governantes, sejam eles do executivo, legislativo, judiciário, estejam depostos, empossados, falecidos, investigados, presos, foragidos, à esquerda, à direita, no mundo da lua ou do cão, vai encontrar mais um monte delas. Um Everest!

Se, indo além, mirar imprensa, atletas, artistas, movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos, igrejas, mesmo as raras associações verdadeiramente caridosas, que não sugam o erário e, ao contrário, geram tesouros de esperança, achará, em cada qual, mais uma porção.

Se, na ânsia de se convencer, escarafunchar o comportamento dos seus vizinhos, amigos, parentes, mesmo aqueles que você mais ama, nem precisa que a viagem chegue ao âmago: o olhar mais benevolente que se lhes dê não impedirá a revelação de mais uma penca.

Agora, se você quiser, de verdade, exceler no mister de caçador de hipocrisias; se desejar, do fundo da alma, contemplar a miríade mais vasta dessas formidáveis criaturas, vá ao espelho. Observe-se sem pudor. Liberte o reflexo dos grilhões do orgulho e deleite-se com o maior espetáculo da Terra.

Porque caçar hipocrisia lá fora não requer nenhum trabalho. Basta abrir a palma da mão e recolher a abundância. Difícil é sair do gabinete de si e admitir, sem subterfúgios, que as portas talvez tenham ficado fechadas tempo demais.
 

domingo, 28 de agosto de 2016

30

 
Meu avô sempre nos dizia, ao desejar algo nas datas comemorativas: "saúde, paz e muita sabedoria".
 
Ao completar 30 anos, percebo que, de fato, ele tinha razão: saúde para lutar; paz para repousar; sabedoria para entender, no caos dos acontecimentos, o momento para um e para outro.
 
São os meus três pedidos para hoje.
 
O quarto, oração de todos os dias, não só deste domingo, é que nunca me falte a clareza de que a única realização a que posso aspirar na vida é estar perto das pessoas que amo. Ser melhor por elas. Ser mais forte por elas. E ver o tempo nos moldando, nos mudando, multiplicando e misturando.
 
Por isso escrevo, por isso sonho, por isso sinto saudade, por isso me desculpo, por isso agradeço.
 
Por isso sou feliz.
 

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Perguntas


Cada post realizado, salvo outros três, em média. Não sei se é algo bom ou ruim. Fico pensando depois: quem vai ler tudo isso? Quem vai se interessar? Qual sua importância, a não ser para quem redigiu, ainda mais não sendo eu um escritor profissional?

Muitas vezes penso na minha descendência, entre filhos futuros e sobrinhas presentes. Não no sentido de deixar qualquer legado, porque não teria tal pretensão, mas no sentido de que soubessem quem eu sou, quem eu fui, quanto amei. Algo de que me ressinto em relação a meus avós falecidos, a outros parentes importantes dos quais só tenho os testemunhos de quem com eles conviveu. São narrativas que fazem falta, que fariam companhia em horas de paz ou desencontro.

Neste aspecto (em qual não?), a vida é surpreendente. Acostumados à superfície, mal tangenciamos a experiência íntima dos que nos cercam. As pessoas passam e o que fica delas? O que sabemos de suas aspirações, de seus temores? Acabamos no pântano comum das impressões, das imagens públicas, dos apelidos, dos traços físicos. Daquilo que seria suficiente, não fossem os álbuns, os chaveiros, as caixinhas de lembranças no fundo do guarda-roupas, abertas, quando muito, de ano em ano, quase como um ritual. Não fossem as conversas em silêncio, as mudanças adiadas, o choro das permanentes despedidas de si mesmo.

Cada vez que me dou conta de haver deixado de lado uma oportunidade de entender melhor alguém, rasga-se-me uma fibra. Porque sei que ocasiões assim não se repetem. Como sei que os olhos correm sem pousar a tela, as ruas, as vitrines, os rostos, porque este é o ritmo e a regra. Não dá para ser próximo de uma multidão, evidentemente, mas e quando a distância se aprofunda com quem está do lado? Quem não sai do pensamento? Quem estende a mão? Quem o tempo já levou?

São perguntas que me faço nesta idade, ciente de que as respostas não virão nas próximas. Talvez não existam. Talvez, existindo, sejam ferozes demais, difíceis além.

Amém!

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Discurso

 
Às vezes a gente começa a semana como quem termina um ano. Um ano não, um ano-luz.
 
O que é natural no ritmo dos enganos, pois enquanto um corpo resiste a sair do cobertor, uma alma não resistiu e desertou do corpo congelado lá na rua, doente do frio, da esquerda, da direita, da opinião e seu oposto, do porre de algum desgosto. Uma alma que, tudo indica, serve melhor à sociedade e seus cabeças agora que é penada.
 
O que não é natural, pois enquanto juram que você é feliz, na verdade o trem está a um palmo de descarrilar, e enquanto a face parece abatida, o peito está a exultar, e enquanto o mundo pensa entender, na verdade ninguém sabe é nada.
 
E porque, abracadabra, enquanto tudo que lhe falta, tudo quanto anseia, é ser o mais simples dos homens, enrola-se a língua, contorcem-se os membros, secretam-se gosmas, triunfa nos campos o epilético vulto do discurso.
 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Segunda-feira

 
Todos os planos de grandes mudanças que fiz para começar nas segundas-feiras falharam brilhantemente. Os poucos que, de fato, se iniciaram, tiveram uma vida média de 3 dias, aproximadamente, prazo a partir do qual se espreguiçaram e voltaram ao sono profundo de onde surgiram.

Mesmo com tantos dados pessimistas em mãos, quase todo domingo à noite, não tem jeito: já começa de novo a tentação. Um impulso que corre a coluna, cora o rosto, faz esfregar as mãos. Vou fazer isso, vou fazer aquilo, nada será como dantes. Ajustes, reformas, revoluções. Admirável mundo novo.

E a segunda chega, lentamente, com seus passinhos irônicos de dança, o sorriso irrevogável, as vértebras de pedra, a marreta solene a derrubar, insensível, os princípios da construção.

Diante de tal panorama, alguém poderia questionar, com toda a justiça e perspicácia: por que insistir no que a própria estatística já provou consistir em erro? Sinceramente, não sei responder.

O que sei, com alguma reserva de convicção, é que, apesar de tudo, um esforço nunca é em vão. Por mínimos os frutos palpáveis, cada ideia de mudança já compreende uma mudança. Cada plano que consegue ir adiante, ainda que por poucas horas, já traduz uma iniciativa. Consequentemente, cada domingo de tentação é um reconhecimento implícito de que há o que fazer e como fazer, o que, por si só, constitui uma celebração das potencialidades da vida.

Deu resultado? Que bom! Não deu resultado? Que bom também! A incerteza é uma das poucas provas do livre arbítrio, um dos muitos mistérios que atiçam a inteligência e tocam o coração.

Aliás, tocou!
  

terça-feira, 24 de maio de 2016

Devia

 
Todo mundo devia ter direito a começar seu dia brindado com um pequeno prazer. Poderia ser cheiro de café, canto de pássaro, face querida, surpresa boa, como lembrar algo importante que dormira esquecido.
 
Coisas até mais simples: a pele texturizada no cobertor, o ar entrando pelos pulmões, as primeiras espreguiçadas do corpo revigorado, o frescor da pasta de dente. Mesmo a água fria da torneira, que, afinal, é água, é choque, é vida.
 
Direito, também, a começar seu dia brincando, acreditando, despertando livremente da noite de seus sonhos para ir colher outros à luz do sol. De barriga cheia e pés aquecidos, olhos abertos e esperançosos, carinho no rosto e coração enternecido.
 
Todo mundo devia, ainda que só nas linhas de uma boba fantasia.
 

terça-feira, 17 de maio de 2016

Oculto


Renuncia-se a uma palavra, a um gesto, a um impulso. A um sentimento embrionário que, vai saber, poderia virar tudo, ser a própria identidade espelhada nos olhos de alguém.

Renuncia-se não à toa: por fraqueza, às vezes, mais que por força; pela grandeza de horizontes mais fundos que aqueles que a vista presente alcança; pela paz, pela intuição de evitar conflitos cujo saldo pode ser muito mais terrível que a perda daquilo a que se abdica.

Mais que a falta objetiva, que a saudade adivinhada, o ato de uma renúncia tende a ser duplo: por si e, especialmente, pela ciência triste de que ele não será visto, não será reconhecido. Ficará nos subterrâneos, como o esgoto e a água. Ficará oculto, como as raízes.

Faz parte do seu show. Não poderia ser diferente. Desejá-lo seria invalidar a própria essência da renúncia. E bem sabem as almas sensíveis, tão diferentes da minha, quanto se perde com os atentados à essência, tão corriqueiros quanto letais.

Assino Oculto, como as já ditas raízes, que se escondem para que as flores, merecidamente, brilhem.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Burocrática


Vez por outra a gente recebe uma nota de falecimento por e-mails institucionais. Na grande parte dos casos, não conhecemos as pessoas que faleceram. Docentes aposentados, o pai de um funcionário de outro departamento, no qual sequer pisamos, alguém que ocupou um cargo já caduco na lógica administrativa.

A gente olha os dados biográficos, sumários como nada que pareça com a vida. Endereço do funeral, condolências automáticas nas palavras de pesar. A morte em sua face mais fria, que é a face burocrática.

A gente apaga o e-mail, para não obstruir a caixa de entrada. Com um clique, esquece o que já foi esquecido pelo ciclo natural da fisiologia. Nada há de cruel neste ato, é verdade. Quantas pessoas não morrem todos os dias? Quantos, talvez, que nenhuma chance tiveram no decurso de sua existência, que não sorveram sabores vários, que tiveram seus sonhos mais simples vetados pela necessidade de acordar cedo? Quantos, possivelmente, que não chegaram perto da plenitude e da felicidade daquele cujo finamento acaba de se nos comunicar?

Nada há de cruel, repete-se. Se todo sofrimento humano açoitasse a pele dos indivíduos da espécie, pereceríamos no primeiro ar. Não daríamos um passo, não articularíamos um som.

Nada cruel, sublinha-se.

Por que, então, esta amarga sensação?

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Redação

 
Uma vez, na aula de italiano, precisei descrever como era o lugar dos meus sonhos.
 
Modéstia à parte, fiz um bom trabalho para quem estava começando a aprender. Caracterizações bem trançadas, um final decente e razoavelmente poético, dentro das possibilidades.
 
Não entreguei, porém, a redação. Até hoje está devidamente guardada, recordação que é de um tempo no qual eu acreditava naquelas palavras.
 
Minha pergunta, hoje, é outra. Como são os sonhos do meu lugar? Quais as chances de se realizarem? Qual a importância de se realizarem, se intactos e puros no carrossel da hipnose?
 
Precisaria de muito papel para esta redação. Ao mesmo tempo, de quase nenhum. De meia dúzia de nomes próprios que levam o oceano a meus olhos e fazem que eles vejam o infinito. De uma conversa simples em uma mesa simples ao redor da qual nada precise acontecer. De um sorriso que é metáfora, pleonasmo e superlativo da felicidade.
 
De saudades afagadas pela intensa vitalidade do amor que as sucedeu.
 

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Desimportante


Um professor da faculdade apresentava, no telão, as pérolas produzidas pelos alunos em suas provas. Transformava, assim, a tensão da divulgação das notas em um momento descontraído.

Uma vez, julgando encontrar um erro gramatical evidente, sublinhou, como uma dessas pérolas, a palavra "desimportante", utilizada por desavisado estudante em uma de suas respostas. Na época, não sabia que a palavra existia, de modo que, apesar de desconfiado, acreditei que, de fato, algum erro havia-se cometido.

Uma pulga atrás da orelha, porém, levou-me, anos mais tarde, a sanar a dúvida. Sim, a palavra "desimportante" consta nos dicionários. É um pouco feia, soa mal, mas existe. Apenas não é utilizada com frequência. Seja quem for o autor da pérola, pois, fique redimido: você não estava equivocado(a).

O que a pulga não me contou (nem o faria, por bioquímica lealdade) é que o sangue que ela haveria de extrair de meu pobre lóbulo era também desimportante. Que, tão depressa eu decifrasse esse enigma sem esfinge, perceberia que a palavra feia, a palavra torta, a palavra da qual, com razão, todos riram na sala de aula, era aquela que mais bem se ajustava ao rastro que eu ia deixando. Pegadas desimportantes, marcos desimportantes, metas desimportantes. Lágrimas, pontadas, receios, contenções, cabimentos desimportantes. A própria desimportância desimportante, parada como um rio podre, banal como um bolo de supermercado, em seu completo alheamento; paliada por canções dulcíssimas, por ideias geniais, por números impossíveis que, confortando-a, mais a corroboram, em sua ânsia de expressar o que não há, o que não é.

Constatar-se desimportante; perceber que todos os signos, todas as memórias, tudo de mais sagrado que plantamos, colhemos e cuidamos pode nada significar; intuir, ainda que por um instante, que, no revolver das gavetas, o afã será por esvaziá-las, não conhecê-las; descobrir que ninguém quer seus brinquedos velhos, seus livros amarelos, suas palavras sem pilha, é algo com que não se sabe lidar. Com que a mais serena têmpera deixa-se perturbar. O maior baque, talvez, da existência da alma.

Daí, pois, a importância de reconhecer. De mostrar. De falar. De brigar, até, se linguagem mais branda não souber manejar. Reconhecer, mostrar, falar o quê? Qualquer coisa. Tudo. Quanto quiser. O mais simples detalhe, a  mais despretensiosa observação. A indiferença inerente à condição vital só é superada em crueldade pela indiferença que se impinge voluntariamente ao semelhante, como ato de rancor ou expressão displicente de desdém.

Em palavras mais cruas: mande-me à merda, mas não me deixe aqui no porto, acenando o lenço gasto aos fantasmas do naufrágio.
 

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Isso

 
Vivo simplesmente. Poucos artifícios. Como o que há no prato, respiro o ar que me vem, respondo a quem me pergunta. Mil defeitos ostento, outros mil oculto, vultos, no impenetrável núcleo das selvas intestinas. Entre feras e ribanceiras, dois mil, portanto: nenhum, no entanto, que me reflita como não sou.
 
Sou isso. Em constante mudança, em desejável mudança. Por mim, pelos que me amam, pelas circunstâncias. Nada mais tolo que não mudar. Nada mais egoísta que se declarar impassível de modificações, como se gostar fosse um ato unilateral e incondicional de confirmação.
 
Com toda a mudança, ainda assim, sou isso. Continuo isso. Nem mais nem menos. Não digo o que não sinto, não procuro o que não me toca, não me aproximo do que não quero perto, não me arrependo do que me encanta. O que pareço aos olhos dos outros, não sei. Desejo, de coração, que o melhor, o mais verdadeiro em relação àquilo que penso de minhas próprias escolhas. Não posso, porém, controlar. Não quereria controlar. Não me compete. Apenas reitero: não digo o que não sinto, não procuro o que não me toca. Se falo que é bonito, é porque vejo beleza. Se escrevo que sinto falta, é porque tenho saudade. Pouco valor tem meu juízo de caráter, meu fascínio, meu sentimento, tudo isso é verdade. Muita gente enxerga melhor, mais nítido e longe que eu, com meu grau e meio de miopia. Mas meu olhar é meu olhar, e ele não sabe mentir. 
 
Ele vê que há os que pedem sinceridade, mas não a aguentam. Os que clamam por demonstrações de amor, mas logo se entendiam. Os que almejam ser compreendidos, em vez de julgados, mas depressa acusam a falta do aguilhão da clava alheia. Tão flagrantes contradições, que não haveria linha para fiar tanto tecido.
 
Eu não peço nada. Não clamo nada. Não almejo mais que um filete de água que desafie a impostura da ravina. Mas reconheço que é uma opção lógica. Pode mesmo se tornar um bom negócio nos balcões propícios. Lucrativo e piedoso, dependendo das cartas lançadas. Não para mim. Com todo o respeito de quem nada postula, com toda a pompa de quem tudo teme, o jogo das aparências não me interessa. É possível ser polido, diplomático, gentil e respeitoso sem dele participar. Mais que possível: é desejável; é cristalino; é urgente.
 
E digo o porquê: prefiro ser bobo a ser falso; ingênuo a esperto; iludido a ilusionista. Pois a ilusão, que às vezes fere; que às vezes caçoa, no espelho, da nossa cara de tacho; que às vezes magoa como jamais deveria magoar-se um ser humano... A ilusão vale mais, muito mais que a presunçosa, efêmera glória de dominar um truque.
 

quinta-feira, 24 de março de 2016

Je vole

 
Às vezes penso que algumas coisas em você podiam ser diferentes. Mas, na maior parte das horas, eu penso, rezo, ajoelho-me, até choro, furtivamente, agradecendo por não serem. Por me olhar com este par de sobrancelhas serelepes, tramando ideias que, sozinho, eu jamais poderia conceber. Por me enfeitar as ruas, por me trazer o vento, por me deixar saudade. Pelas pequenas alegrias, os mínimos prazeres, imensos sentimentos que, juntos, giram coloridos no carrossel da felicidade.

As luzes rodantes que fazem, do seu sorriso, quase todo o meu.

Tanto mais!
 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Banal

 
Uma árvore se cobre de flores e, em meio à profusão de cores da primavera, alguém diz: "é banal!".
 
Verdade. As pétalas são banais, as estações são banais, o tempo é banal. Apontar a banalidade, ora, o que mais banal? O que mais inútil?
 
Eu vivo pelo que é banal. Os melhores momentos, aqueles em que mais profundamente amei e compreendi, não necessariamente nesta ordem, foram banais. Aqueles para os quais não me preparei. Ocasiões em que não lembro como estava vestido, se chovia, se o calendário aprovava, se fazia sentido.
 
Não menospreze o banal. Deixe-o ser assim. Na excepcionalidade simples de sua coleção, quem sabe, a felicidade inconsciente, inesperada e indefinível antes de acontecer.
 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Ponto

 
Na primeira aula de desenho geométrico, diziam que a definição de ponto era a de algo sem dimensão.
 
Para a matemática, vale. Para a vida, não. Um ponto, ou melhor, um evento pontual, esconde toda uma cadeia. Uma palavra advém de incontáveis rascunhos formulados na imaginação, às vezes no coração. Um olhar guarda a soma de tudo o que se viu e se quer ver. Uma atitude reflete uma paisagem do interior. O que se mostra ao mundo, por intermédio de um gesto, são os fiapos extremos de um tecido imenso, zelosamente trabalhado nas oficinas do sentimento.
 
Importante ressaltar, porém, que, no ato próprio de se mostrar, o fiapo não é mais fiapo, é o tecido em sua inteireza. O olhar é o sentido da visão. A atitude é o âmago. A palavra é a alma, é o amor.
 
O ponto, único porto plausível do humano entendimento, a que se devia dar mais consideração mesmo nos dias corridos; mesmo nos tempos trevosos, de geométrica ressaca.
 

domingo, 3 de janeiro de 2016

2016

 
Nenhum ano é ruim para uma vida como a minha. Qualquer conclusão diferente seria não apenas um pecado, como um desrespeito para com quem me criou, quem me cerca, quem me quer bem. Um atestado de alienação em relação à miséria que campeia no mundo e em meu país.
 
Dito o principal, que é a consciência do privilégio, há os ciclos melhores, os piores, os mais ajustados, os destrambelhados, os esquisitos. Posso dizer que a última categoria abraçaria calorosamente 2015: um ano, entr...e muitas outras coisas, esquisito. Ao qual, porém, devo meus tributos extras, além dos já mencionados, por importantes realizações e oportunidades pessoais que tive em seu decorrer. Elas podem parecer pequenas, por determinados critérios; simplórias, para indeterminados olhos; nunca para mim.
 
Se 2016, qualquer o adjetivo que a ele se afeiçoe em seu final, tiver a singeleza do amor, já terá sido inesquecível. Se nele não faltar saúde, já terá sido abençoado. Se nele pairar um pouco de justa paz, já terá sido um tempo ganho. Com a implícita redundância da expressão, que tempo nenhum é perdido quando a escala é o coração de quem o mede.
 
Mais, no entanto, que saudar 2016, ano em que completo 30 e em que, coincidentemente, uma série de marcos importantes da minha vida assinalam a sua primeira década, cumpre-me este resgate insólito, todavia necessário, de louvar a beleza e poesia do que passou. Os felizes anos velhos, sem os quais não haveria estas palavras e este desejo por um próspero recomeço.
 
Os anos de meus antepassados, de meus bisavós e avós, tanto os que me conheceram quanto aqueles com quem não pude conviver. Os anos de parentes, amigos, vizinhos, professores e outras pessoas queridas que já não estão mais entre nós. Os anos de brinquedos, de passeios, de uma aurora que se prometia a mim com infalível convicção e que agora, tio, prometo-a, instintivamente, a minhas sobrinhas, sem saber se, de fato, ela existe. Os anos de chuva na janela, rosa na lapela, bilhetes de bom dia, pai-nosso, ave-maria. Os anos de gatos no telhado, taças na cristaleira, futebol de terra, jogo da memória. Os anos de milk-shake em copos com cobertura.
 
Impressiona como cabe, em um piscar de olhos, tudo o que os encantou.
 
Como cabe e como passa!
 
Feliz 2016!
 
Allan
 
31/12/15