domingo, 29 de março de 2020

Destino


Não me alinho muito com a ideia de que o ser humano vá sair melhor da crise. Entre outras razões, porque, humano sendo, tendo a incorrer no viés de considerar como melhor aquilo que se me assemelhe, o que já me faz, desde o princípio, juiz parcial da pensada evolução.

Sendo muito honesto, não me alinho nem mesmo à ideia de que o ser humano possa ou deva, no atacado, melhorar. Muito, afinal, da grandeza do que a nossa espécie produziu deriva da superação do mal que ela própria sabe causar, não de sua negação. A virtude só faz algum sentido quando convive intimamente, na mesma alma, com o potencial de pecado de que esta é capaz.

Isso dito, pontuaria que há coisas mais simples a se tirar do momento. Se, em vez de uma redenção geral e triunfalista, uma pessoa tomar um tempo para pensar em outra como até hoje não pensara; interessar-se mais proximamente por seu bem-estar; comparar ambas as circunstâncias e lutar para encontrar semelhanças; desejar-lhe um bem qualquer com todo o coração; se apenas isso acontecer, na escala mais discreta que se possa imaginar, já será um acréscimo de bem sem paralelo ao mundo que dividimos.

Não o salvará, desta nem de outras turbulências, mesmo porque tampouco sei se me alinho com a ideia de que o mundo precisa ser salvo, pois voltaria ao dilema inicial, de que, humano sendo, tendo a incorrer no viés de acreditar que a força salvadora saia sempre das minhas hostes, não do inimigo.

E aí já não é história o que faríamos, mas destino, pouco importando o peso da escolha, a liberdade do arbítrio, a saúde, as renúncias, o amor ou as coisas simples, cujo estatuto se alteraria, de forma triste, ao de simples coisas.

quinta-feira, 26 de março de 2020

domingo, 22 de março de 2020

Movimentos


Há alguns dias, uma pessoa que conheço foi levada de casa na ambulância.

Não sou próximo dela, em termos de relação particular; não penso, em absoluto, da mesma forma que ela, adepta de uma visão muito mais à esquerda e mais militante do que a minha. 

Ao ver o reflexo das sirenes, contudo, nada disso me passou pela cabeça. Qual a importância de que não sejamos amigos ou de que não compartilhemos de umas poucas opiniões sobre umas poucas questões de um tempo e lugar igualmente poucos, diante do vasto mistério da vida? Naquele instante, ela era um corpo imerso na luz de uma ambulância, eu era sombra detrás de uma janela.

Em dias difíceis, dias de notícias ruins e de profunda impotência, a maior violência que se pode cometer contra uma alma em dor é cavar o abismo que vigora entre ela e as demais. É forçar a porteira de seu silêncio reparador com gritos histéricos e supérfluas imprecações. Um sofrimento que, em sã emoção, não se deseja a ninguém.

Por maior o cuidado, entretanto, todos estamos sujeitos, por humanos, a fazê-lo. O que não nos impede de lembrar que, em meio à euforia e o ódio das horas comuns, as ambulâncias estacionam na frente das casas, cortinas balouçam mesmo na ausência do vento, e são estes movimentos, não outros, os que nos fazem respirar.

sábado, 21 de março de 2020

SUS


Nos últimos tempos, muitos pronunciamentos pipocaram nas redes sociais sobre a importância de se defender o nosso sistema público de saúde. Como brasileiro que sou, além de ex-aluno de medicina, trata-se de um tema que me interessa bastante. Faz-me refletir sobre a seguinte questão: exaltar o SUS em gritos de guerra corresponde, efetivamente, a defendê-lo?

Consagrada pela Constituição Federal de 1988 e formalizada por lei em 1990, a noção de saúde pública como dever do Estado e direito do cidadão encontra-se há três décadas em vigor. Consiste, penso eu, no maior e mais importante investimento social do Brasil. Afinal, ao contrário de outras iniciativas governamentais, de caráter assistencial-clientelista, em que o beneficiário se vê reduzido a uma espécie de súdito do poder central (com drásticas implicações políticas e até democráticas), o acesso ao SUS dá-se por uma lógica completamente diferente de relação entre poder público e sociedade, marcada por sua natureza impessoal e universalista.

Bastante criticado por suas insuficiências e debilidades, o SUS deveria, sim, ser reconhecido, de forma muito mais ampla, pelos benefícios que produz à população brasileira. O simples fato de conseguir manter as portas abertas, em um país com as nossas dimensões e os nossos problemas, consiste em formidável feito organizacional, cujo mérito me parece ser integralmente devido a seus bravos trabalhadores. Qualquer pessoa sabe os desafios que tais profissionais (todos eles) vêm enfrentando, mesmo nas praças mais desenvolvidas do Brasil: dificuldades salariais, escassez de insumos, superlotação, violência, etc.

Se esta, contudo, é uma realidade vigente desde a sua criação, com um marcado antagonismo entre a incúria dos governos, de um lado, e a dedicação heroica de profissionais da saúde, de outro, será o súbito impulso virtual em defesa do SUS um verdadeiro e espontâneo convite à reflexão, motivado pela epidemia do coronavírus, ou mero atalho para ringues em que se encetam outros gládios?

Admitindo-se que se trate do primeiro caso, uma série de indagações cruciais vêm à mente:

Após três décadas de sua concepção, será que o SUS se encontra no patamar em que verdadeiramente poderia estar, a despeito das naturais dificuldades de um país pobre como o Brasil?

Será que os sucessivos escândalos de corrupção na área da saúde pública não desviaram recursos suficientes para que tal patamar fosse atingido?

Será que a ótima relação de executivos de empresas de saúde privada com políticos de proa, ilustrada por episódios como o de um ex-presidente da República frequentando a casa de praia e usando os jatinhos do maior acionista do setor, tem a ver com as facilidades inúmeras desfrutadas por tais entidades?

Será que se esses planos de saúde praticassem preços minimamente honestos, mais pessoas não os contratariam, diminuindo o universo de pacientes atendidos exclusivamente pelo SUS?

Será que o "Social" da sigla BNDES não justificaria investimentos em saúde muito mais importantes que outras escolhas feitas pela instituição, dentro e fora de nosso território?

Será que o bilionário lucro auferido em cada uma dessas operações duvidosas, por políticos e empresários cuja identidade nada tem de duvidosa, teria aumentado o número de leitos de UTI da rede pública, cuja exiguidade assombra os prognósticos atuais, em face da epidemia?

Será que se parlamentares usassem mais as suas emendas para a área da saúde, pequenas obras em eterno andamento não estariam prontas?

Será que se mais verbas de comunicação oficial fossem direcionadas para campanhas de saúde pública e menos para a promoção de interesses partidários, os próprios cidadãos não utilizariam melhor o SUS, ajudando a descongestioná-lo e, assim, prestar melhores serviços?

Será que a dengue, o zika, o sarampo, a sífilis, entre várias outras doenças evitáveis com prevenção, não contribuem, diariamente, para agravar deficiências do sistema?

Será que a violência assustadora do país não gera sobrecarga nos hospitais?

Será que a imprensa cumpre o seu papel fiscalizador nesta área fulcral, em que tanto a sua atuação faria diferença?

Será, por fim, que a energia dissipada nos gládios outros, a que me referi acima, não estaria melhor empregada, de 1988 até hoje, em evitar que este inquérito precisasse existir?

quarta-feira, 18 de março de 2020

Espetáculo


Muitas pessoas sentem-se pressionadas pela vida. Pelo tempo. Pelas faltas. Pelas escolhas que são obrigadas a fazer.

Sofrem com isso. Às vezes, perdem-se por isso. Veem-se pela metade, porque não lhes contam o outro lado: o que fazem de bom, o quanto são queridas, a beleza que têm.

Na nossa galáxia, deve haver trilhões de estrelas que deixaram de brilhar porque não se viam inteiras. Porque não lhes diziam a luz que eram.

Imaginem o céu da Terra, que espetáculo não daria!

segunda-feira, 16 de março de 2020

Viajar


Viajar pelo tempo cronológico 
Talvez seja impossível 
Então que nunca o seja 

Nas estradas entre olhares 
Nas esquinas entre sonhos 
Nos tempos alternativos 

De um presente 
Quase sempre 
Imprevisível

domingo, 15 de março de 2020

Mirrors


Hoje tive um sonho muito bonito, embora um pouco triste em seu desfecho. Mais ou menos como todo diálogo interrompido não por desejo das partes que se querem bem, mas pelo fato de a vida ser também feita do que não pode acontecer.

Quando acordei, minha mãe estava ouvindo a música Mirrors, que caiu como uma luva para o momento. Tudo, de repente, fez sentido na voz um pouco sentida de Sally Oldfield, que canta encantada, mas como se soubesse, ao mesmo tempo, o caráter provisório de todas as coisas: sonhos, emoções, pesares, realidades. Como se conhecesse, em cada nota, a importância de aproveitar os momentos felizes e não desesperar nos momentos difíceis, porque momentos.

Se existe algo chamado poesia, neste dia que homenageia tal arte, creio que seja exatamente isto: o dom de encontrar sentido até no acaso; de saber que toda sombra assim o é porque existe uma luz, em algum lugar, brilhando forte; de exaltar a gratidão de todo amor, a dádiva de cada dia.

De estar atento, enfim, aos espelhos existentes em cada olhar que passa pelo nosso, inclusive nos sonhos incompletos, neles colhendo (e plantando) a melhor centelha.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Empatia


A noção de que um ser humano pode se colocar no lugar de outro, buscando entender e sentir compaixão pela dor de seu semelhante, consiste em um bem dos mais preciosos que nossa espécie soube conceber. Graças a esta faculdade mental (ou espiritual, a depender do enfoque), muito do que se define como bem, em seu sentido mais puro, existe e se dissemina pela vida, erigindo verdadeiros monumentos à virtude, ao amor, à esperança e à fé.

A forma, contudo, como a empatia tem sido comercializada na grande feira de ilusões da cultura contemporânea – as redes sociais – parece-me radicalmente contrária à essência do termo. Convertida em ferramenta de marketing pessoal, a ideia perde a sua dramática valência de complexidade, própria da tradução existencial entre dois seres distintos, para se transformar em autopromoção. Já não importa mais o esforço, a renúncia, os conflitos, as pontes sempre instáveis, características da dificílima operação de convergência entre as partes envolvidas. O que prevalece é o heroísmo do "eu" empático, pavoneado como evidência de superior moralidade.

É deveras triste que um conceito tão bonito termine sequestrado por lógica assim tacanha. Basta, entretanto, uma estadia de poucos minutos em qualquer plataforma virtual, a fim de atestar o quanto a empatia tem sido usada como símbolo de status, a exemplo de uma roupa de marca ou um automóvel de luxo. A mensagem é clara: eu sou melhor que a ralé; eu vejo o que ninguém vê; persignai-vos, pecadores, perante minha infinita generosidade!

Triste, antes só! Também perigoso. Na falta de empatia, há substitutos razoavelmente capazes de manter certa harmonia social, como a lei, a justiça, a democracia. Nenhuma delas, a bem da verdade, necessita da empatia para funcionar eficientemente. Por outro lado, todas são terrivelmente vulneráveis à proliferação de agentes que se creem moralmente infalíveis – pessoas, partidos, massas, governantes. É assim, aliás, muitas vezes, que morre a política e se espalham os seus zumbis comedores de cérebros.

E é assim, também, que a própria empatia encontra a sua limitação. Sua grande força repousa no fato de se tratar de um processo interno árduo, altamente exigente, do ponto de vista do consumo de energia psíquica. Torná-la mera palavra de ordem, lançada no ventilador das redes sociais como carta coringa, capaz de virar a mesa no jogo das vaidades moralistas, é o mesmo que anulá-la. 

Uma pessoa excessivamente convencida de seu dom empático já não enxerga bem a si mesma. Exigi-lo dos outros seria cair na mais infame das contradições. Entre inúmeros argueiros, porque exigir dos outros, seja qual for o objeto da demanda, constitui, em si, o avesso da empatia.