domingo, 29 de março de 2015

Fuso


Sonhei que estava em uma faculdade nos Estados Unidos. Várias piscinas e quadras em volta. A sala, no estilo de anfiteatro, era escura como um cinema. O professor muito, muito bravo. Os colegas, como não poderia ser diferente, iguais aos brasileiros (muitos, inclusive, eram literalmente os mesmos).
 
Curioso que, nas faculdades que frequentei, nunca treinei ou nadei. Dos países que pretendo visitar, os Estados Unidos não estão, por ora, no topo da lista. A sala não se parecia com nenhuma na essência (na forma, talvez uma mistura da Congregação da FEA com as do IB da Unicamp). Professores bravos nunca o foram comigo - as poucas vezes que me dei mal, foi com os bonzinhos e descolados, sempre muito pródigos em lições de bem viver.
 
Qual a conclusão de tudo isso? Boa pergunta. Insônia e falta de assunto seriam boas respostas, mas não. O Vettel ganhou a corrida, o corpo tá meio desnocado, o celular tocou com promoções imperdíveis na estreia da manhã. Ao fim e ao cabo, cada um fala o que quer, ouve o que não quer.
 
E a vida é bela talvez por isso mesmo: essas insensatezes, esses absurdos de gente que não tem o que fazer senão amolar os outros com crônicas sem importância. Essas diferenças não exatamente de horário, mas de fuso itinerário.
 

sexta-feira, 27 de março de 2015

Tapete

 
Em meio à profusão de especialistas, pisoteado pela procissão de superiores consciências, eu, que nem idade tenho para andar em nostalgia, começo a sentir falta das almas ingênuas que me cercavam, da gente comum que tinha dúvidas e, por vezes, não sabia o que fazer. Das pessoas reais, tácteis, com quem era possível conversar sem ter que, a todo instante, provar pontos, confirmar teorias, atacar e defender-se como se em guerra sem fim.
 
Quem não ignorava que um tapete só é macio porque há um chão duro que o sustenta.
 

sábado, 14 de março de 2015

Deixar-se

 
Quando penso em seu rosto, não quero que todos descubram a beleza que nele vejo. Desejo que ele sorria, que se ilumine de fantasia, que core de fascínio e surpresa onde impossível achar encanto.
 
Pois quando penso em você, só o que me preocupa é que seja feliz; que consiga, no caos urbano, minutos de segredo para ouvir o coração.
 
Pois quando, discreto, amo em seu coração, ouço poemas ainda por se escrever, litorais ainda por se inundar. E já pouco importa ser uma ilha, o mar,... o escritor ou um barquinho velho cortando o horizonte, desde que este se expanda em seus ideais, desperte-lhe sonho e nostalgia do que será.
 
Pois quando a vida a eleva, por longe que esteja posso vê-la, estrela, brilhar. E isso me aproxima, não afasta. Isso me basta. Este amor que, do céu à terra, de mistério não tem nada, pois nada busca, nada exige, nada pede senão deixar-se existir.
 

sexta-feira, 6 de março de 2015

Improvável


Uma pessoa, por desajeitada que seja ou pense estar, pode aprender várias coisas: nadar, patinar, desenhar, dobrar roupa, falar línguas. Aprende a dançar, dirigir, fazer esportes, proferir discursos, plantar uma horta, cultivar pomares no quintal de sua rotina.

Vamos além: se inato, como dizem, o talento, inata, igualmente, a capacidade para criar conhecimento. Porque uma pessoa, assim querendo, pode muito. Aprender não só habilidades, mas sabores, texturas, cores, dimensões. Quão semelhantes teto e piso nos imprecisos giros do planeta.

Sim, uma pessoa pode crescer, pode expandir-se, aprimorar-se. Descobrir formas autênticas de rir e de sorrir, novos mistérios em velhos saberes, novos sinais no caminho cotidiano. Enxergar beleza onde não as via, onde hábito e lei diziam não haver.

Em meio a este acervo comum de potencialidades, pessoas pensam diferente, expressam-se diferente, falam diferente, olham diferente, até enxergam diferente. E, com tudo isso, podem sonhar igual. Sentir igual. Ora, quantos discrepantes relevos debaixo da mesma amplidão de água, dos mesmos raios de prata da lua inatingível? Esses reflexos sobre nós, embalando afinidades, não nos unem o bastante?

Unem, claro que unem, como nos unem aquelas notas indizíveis que vem de dentro: o respeito, a empatia, a carícia avassaladora de quem verte ternura dos poros. Quem se aproxima, com toda a sinceridade de uma prosa, das rimas do coração. Quem se preocupa, nos detalhes mais banais, com a nossa condição. Quem afaga ansiedades, cuida dos silêncios, fia expectativas. Quem, nessas horas desgarradas que não se aprendem, cunha, modestamente, pequenos milênios de amor.

O que é uma religião, o que oferece um dogma diante de tamanha força? O que pode a estatística nesta torrente improvável? Quanto contam opiniões se a verdade não está no dito, mas no bonito? O que, finalmente, mais bonito que o entendimento entre almas díspares, a atração entre corpos únicos, a melodia que faz, dos nós, os laços?