sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Gratidão


Gratidão é um sentimento dos mais nobres, de fundas entranhas e complexas equações, embora tão simples de se expressar.

Antes, no entanto, deste domínio mais refinado das emoções, em que a razão não penetra e nem poderia fazê-lo, pois não se obriga um sentimento, há patamares úteis. Fórmulas de educação e civilidade, que vão desde o polido e econômico "obrigado", a tramas de maior colorido lexical, tais como "valeu", "tamo junto", "eh nois", passando ainda por acenos, gestos, olhares, carinhas felizes.

Mesmo na ausência calculada e convicta de sinceridade, tais palavras, símbolos e trejeitos são importantes. Nas mais diversas situações imagináveis: quando cai um objeto e alguém o recolhe, quando há uma porta e se dá passagem, quando há uma pessoa na faixa e se freia o veículo, quando se faz um convite, quando se ajuda alguém no início de um projeto que prospera, quando se deseja felicidade.

Mais que ícones de sociabilidade, trata-se, para quem assim o crê, de atitudes positivas. Um dos mais acessíveis meios de humildade e reconhecimento da existência do outro, do valor do outro: não se agradece, afinal, a si mesmo. Uma demonstração prática, e não o meloso discurso, de que, sozinhos, não somos nada.

Você que lê, você que não lê, você que boceja, chora ou sorri, tome, assim que puder, dois segundos para agradecer: um às forças em que creia ou descreia, outro a uma pessoa. Anônima ou conhecida, reincidente ou esquecida, isso é o de menos. Garanto pouquíssimas coisas na vida com este ralo discernimento humano, mas esta, sem medo, lhe asseguro: estará fazendo, de seu tempo, o mais rentável investimento.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Práxis


Escrever nada mais é que praticar a saudade que o coração "apenas" sente.

E porque a saudade não tem regras, todo escrito vale: livros, cartazes, mensagens, pequenas carinhas felizes, ecos da amorosa imaginação.

E porque a saudade bate, até o que não disse ainda ou nunca direi.

sábado, 1 de outubro de 2016

Mistérios

 
Não raro, pairam nos ares, públicos e privados, clamores por amor, gentileza, tolerância, compreensão, mundo melhor.
 
No ponto atual, acho que o mínimo do mínimo de respeito já seria um suspiro profundo de paz. Como estão as coisas, milita-se hoje muito mais perto dos tratores que dos tratos. Causas as mais libertárias revestem consequências que flertam, nas implicações práticas de seus programas, com atrocidades totais. Coletividades apresentam-se com um egoísmo tal, que a própria Contradição, fosse uma deusa, coraria.
 
Constituísse a política o único nó; fossem os partidos, os governantes, os candidatos, as assembleias; fossem, mesmo, os sistemas econômicos, todos aqueles -ismos que parecem explicar tudo, exceto o fato de que não existem além da imaginação teórica de quem os determina, seria mais fácil. No fundo, é a sua função: tornar mais fácil o que é complexo, o que dança à beira do precipício.

Problema é que vai além. É também, e muito, o que vem de dentro. O que se dá de pessoa a pessoa, de casa a casa. O valor que se atribui a quem está perto, a quem passa do lado, a quem prestou uma ajuda e merece gratidão, a quem vai cruzar uma porta e não quer ser derrubado só porque deu o primeiro passo. Noções elementares de dignidade, reconhecimento alheio e até física, que não podem, em nenhuma hipótese, submeter-se à vocação autoritária do próprio umbigo, por mais belo que se intitule o que ele aponta.
 
O entendimento de que as carnes são as mesmas, os órgãos, o sangue, as correntes elétricas, e que, se isso não é o bastante para tratar bem uma pessoa no singular, não adianta nada ter, na boca, o melhor discurso para elas no plural. Mesmo porque, a vida, em seus mistérios, em seus jogos de imagem e reflexo, dá, por vezes, o prodígio ao medíocre, a doçura ao truculento, as mãos ao pé para subir e olhar sobre os tapumes.