terça-feira, 10 de abril de 2012

Faltas


Não sei se é porque estamos em abril, mês que sempre me reserva das suas (em 2008, lá pelas cercanias da Páscoa, dei até para começar um diário, que logo abortei e ontem andei relendo, com perplexidade e nostalgia). Em todo caso, já há alguns dias que venho pensando em um tema cuja natureza se revela, a meu ver, delicadíssima: a falta.

Reflitamos: quantas faltas preenchem a nossa vida? Como passar por esta, aliás, sem aquelas? Uma vez, fazendo uma experiência cinematográfica junto com meu irmão, perguntamos a algumas pessoas da família sobre o assunto. A questão era a mais aberta possível. "O que faltou?". Não vou lembrar exatamente o que cada um declarou, mas a comunidade do sentimento é marcante. Sem exceção, as respostas fluem de um aspecto inicial mais palpável, como entes queridos mortos, aromas de infância, vigor físico, a um espectro de ausências vagas, ligadas majoritariamente à passagem do tempo. Neste último caso, aliás, não somente a substância da declaração se torna vaga, como as próprias palavras tendem a desvanecer, gerando um inventário de sentimentos belo e profundo, mas também incoerente, de difícil tangência.

Justamente em virtude da complexidade da matéria, não me sentirei decepcionado, nem mais ilhado do que já estou, no caso de engendrar antes incompreensão que entendimento ao falar de minhas faltas. O que posso adiantar é que elas oscilam desde lacunas milimétricas, como pequenos adiamentos, atrasos, bibliografias complementares, explicações de professores, compromissos sociais, a grandes vazios, incidentes sobre virtualmente a totalidade das melodias do concerto vital. Vazios presentes, pretéritos e, alguns deles, vazios assombrados antes mesmo de acontecer, visto que são, essencialmente, vazios de futuro, pressentidos com temor e estranha resignação desde esta aurora.

Esmiucemos alguns deles. Se tivesse uma lente agora diante de mim, inquirindo-me o que faltou, começaria pelo menos relevante. Meus livros de italiano, por exemplo. Toda vez que os olho, que abro suas páginas incompletas, que contemplo as linhas dos diálogos em branco, tenho uma pequena tristeza. Não por performance ou por notas, que ao fim do semestre acabam até bem altas, mas pela atitude. Pelo fantasma do desleixo, os motivos infantis com que às vezes me surpreendo justificando o protelamento de alguma dificuldade. Pela ciência de que um pouquinho mais de vontade e os balões dos personagens estariam repletos, seus semblantes, felizes, os ditados, transcritos e corrigidos, os exercícios, resolvidos. O mesmo para outros tantos débitos mais significativos, outros tantos diálogos que deixei ou deixo em branco, em São Paulo, em Campinas, em São Sebastião, na casa dos meus primos ou da minha avó, em todos os lugares que freqüento, com diversas pessoas que conheço.

Aí está outra coisa que faltou: o diálogo. Relendo os diários que mencionei, percebo quanta coisa eu tinha a dizer e calei. Quanto, aliás, ainda tenho a dizer sobre aqueles anos, ainda que por linhas diferentes. Muito do seu conteúdo, hoje, não faz mais a menor diferença. Até me embaraça, para ser sincero, por ser uma insensatez só. Mesmo assim, foi um período que determinou e consolidou pontos importantes do que sou e daquilo em que acredito. Quando verdadeiramente me fiz adulto, aprendendo sutilezas da personalidade humana com que jamais atinara. Quando convivi com pessoas muito diferentes entre si, no Cidadão Dançante, na Unicamp, nos pequenos espaços que sobravam fora dessas duas realidades - à época repelentes entre si, forçando-me a andar numa corda bamba diária para manter um pé em cada uma delas.

O diálogo que faltou e segue faltando, com meu avô, com minha avó, com outros parentes que também não estão mais entre nós. Em muitas ocasiões, imagino - e lamento - o quanto deixei de ouvir e conhecer de todos eles, pensando que amanhã diriam novamente a mesma coisa, repetiriam a mesma história. Com os próprios membros da família que estão aí, tocando a sua vida, ora numa boa, ora enredados em intrigas que, como todos nós, em breve voltarão ao pó. É fácil demais, quase irresistível, colocar a culpa nas poucas horas do dia, na opressão da metrópole, no caos urbano, no volume de informações, na batida frenética do capitalismo. Quase todos decoramos e rezamos essa missa. Às vezes é verdade, às vezes não.

Uma falta da qual me ressinto é de ousadia. Não, claro, no sentido que virou banal de ousadia, com saltos de bungee-jump, ondas havaianas, inconseqüentes casos extraconjugais em nome de uma concepção esquisita de liberdade. Não que esteja errado apelar a qualquer dessas alternativas, muito pelo contrário. Cada um encontra o prazer onde bem lhe toca e isso é um problema de ordem sagrada e exclusiva da individualidade. Mas a ousadia a que me refiro é na acepção de enfrentar o ego, de engolir o orgulho, de se admitir feio, estúpido, antiquado, escandaloso, imoral, esnobe, insuportável, desnecessário aos olhos e ao coração de muita gente. Ousadia como abandono sumário da tentativa de construir pontes com todos os pontos remotos do planeta, até com o que está submerso. Ousadia como a assunção plena, sem traumas, de que não é ruim ser apenas mais um, destacado em algumas áreas, patético em outras. Ousadia de parar com a obsessão de ser aceito e entender que já o sou, na medida exata que todos são, ou seja, parcialmente, como toda obra humana. Ousadia lúdica de mandar uma mensagem de texto às quatro da manhã para avisar que a Gretchen está sendo entrevistada no canal 22 da TV a cabo, ou para combinar de ir no cinema amanhã.

Falando nisso, vamos?

domingo, 1 de abril de 2012

Primeiro de abril


"Puseram no lugar
os pés do Curupira,
verdade?
Mentira..."

É primeiro de abril.

Dia de acreditar que o barco que regressa é o mesmo que partiu. De crer que as palavras dizem o que o dicionário diz que elas deviam dizer. De sonhar com geometrias que não cabem no papel, com estrelas que pingam do céu e embriagam os transeuntes. De imaginar a dança no papel das guerras, professores no lugar de carcereiros, o apito do árbitro no estalo dos fuzis. De direitos civis finalmente consumados à exaustão, sem prejuízo de nexo, cancro, dor ou cruz. De tuiuiús voando despreocupados na imensidão do seu Pantanal, livres de algemas de ferro e de controle social. De almejar, sem medo do herético ou o ridículo, o que bem nos aprouver. De ser branco, preto, alto, baixo, bárbaro, douto, homem, mulher, Margarida ou o que der na telha. De o que o vidro espelha ser tão puro e delicado quanto a imagem cristalina que o coração divisa. De a brisa confusa da paz soprar com ganas de furacão, até longe, inofensivo, o último adeus da solidão...

Mourão, deviam baixar uma medida provisória proibindo o primeiro de abril.
Já proíbem tanta coisa, que uma a mais, uma a menos, o povo nem se dava conta.
E em vez de cantarolar como a moda ali de cima, sem perda de efeito ruminariam:

"Deixaram sem mudar
os pés do Curupira,
verdade?
Mentira..."

Ai, que inveja absurda ostento dessa gente que delira!