sábado, 24 de março de 2012

100 postagens, 210 teses, uma vida...


Creio que data melhor não poderia haver para uma centésima postagem. Afinal, hoje se celebra o primeiro aniversário de lançamento do livro "A paisagem vem de dentro", cuja essência advém, em grande medida, desta página. Como a proposta do blog nunca foi biográfica, no sentido de compartilhar, explicitamente, acontecimentos e emoções que permeiam a minha vida (para este fim, os reality-shows, que o fazem com muito mais competência e dramaticidade), nesta postagem comemorativa, por razões diversas, inverterei a tendência. Começarei pelo caminho que levou à publicação do livro, o porquê do título, os percalços e angústias que envolveram todo o projeto, da concepção às vendas. Tomando o gancho dado pelo assunto, comentarei sobre outros percalços e angústias próprios da existência, ou da minha experiência existencial, seus contrapontos, a ansiedade e os ansiolíticos que o planeta prescreve... Enfim, um rocambole do qual, espero, quanto menos se entenda, mais se aproveite.

Inaugurei o blog em 2008, algumas semanas depois de uma importante decisão que tive de tomar: em setembro daquele ano, abandonei a faculdade de medicina. As causas da ruptura (que só foi ruptura em aparência, uma vez que se tratou de ato exaustivamente refletido) atendem por incontáveis nomes. Alguns deles, claramente objetivos, como a perda de interesse pela matéria, a incompatibilidade entre a dedicação exigida e aquela que eu estava disposto a oferecer, a irresponsabilidade que seria lidar com a saúde de uma pessoa sem estar comprometido integralmente com a profissão; outros, pertencentes à zona cinza da subjetividade, como a falência de expectativas, a dificuldade em assumir a identidade esperada de estudante de medicina e futuro médico, o lento desvanecer de ligações com amigos e colegas. Pela extensão da lista de circunstâncias, até hoje é complexo responder, a quem me pergunta com incredulidade, por que eu "larguei" a medicina. Logo a medicina, com que tanta gente sonha, tão difícil de entrar, tão prestigiada, tão sei lá mais o quê. Complexo pelo fato de que a lista só aumenta quando me detenho nela. Complexo pois, apesar do estímulo que me dão ao ouvir minhas explicações, ressaltando a coragem da deliberação, eu, no fundo, digo a mim mesmo que não foi coragem, foi medo. Complexo pois, por outro lado, entendo que não devia dar explicações de nada, a vida é minha, faço dela o que bem queira. Complexo pois quatro anos passaram e ainda desvendo resquícios de decepção em determinados parentes, que me viam em posição de destaque na linha de sucessão para o trono de outros parentes. Complexo, principalmente, porque não deixo de pensar que, se pelo menos uma das razões discriminadas tivesse tomado outra direção, era bem possível que ainda estivesse lá, singrando sendas diametralmente opostas às que percorro hoje. Esta fragilidade vital, estas vírgulas que separam as orações, muitas vezes assustam, ao colocar em xeque a titularidade do que se conveio chamar de livre arbítrio.

Voltando ao que dizia. Inaugurei o blog em um momento difícil, com o intuito primeiro de suprir parte do vazio deixado pela repentina mudança de rumos. A decisão, como enfatizei, foi bastante elucubrada, não resultando de súbito arroubo. Hoje, prestes a me formar em Relações Internacionais, tenho consciência de que ela foi muito bem-sucedida, mais até do que chegara a imaginar. Porém, se a escolha por uma nova faculdade era algo do qual tinha convicção, as repercussões psicológicas da modificação não me foram avisadas com antecedência. De modo que, após alguns dias de tranqüilidade e, mesmo, alívio, seguiram-se semanas de medo, desânimo, febre, indiferença. Estados de alma que jamais experimentara, sanados apenas no ano seguinte, quando o início das aulas na USP estabeleceu um novo sentido. Por meios que igualmente não poderia imaginar, a escrita e esta página, em particular, propiciaram-me muito. Não cabe, aqui, estender-me no objeto do último verbo, porque esse 'muito' se bifurca e as bifurcações se multiplicam. O que sei é que, lendo as postagens, comentando-as, também o que eu escrevia em outras redes e outros papéis, algumas pessoas fizeram-me crer que era plausível o projeto que há alguns meses acalentava: lançar um livro.

O título do blog (e, mais tarde, do livro) surgiu de uma fotografia tirada em São Sebastião. Contemplando o mar, o reflexo esverdeado da serra, as curvas e reentrâncias tão típicas do litoral norte de São Paulo, atinei um dia com este pensamento. Por que a paisagem é tão bela? A que histórias ela remete assim que os olhos transformam-na em imagem? Disto derivei que a beleza não era um bem absoluto, fechado em si. Aquele conjunto de mar, montanhas, ilhas, vento, cores, só se tornava bonito, só suscitava deleite e bem-estar, por ativar outro conjunto de paisagens, tempos e memórias dentro de cada um de nós. O que leva a que encontremos, em paulistanas asperezas de concreto, traços de maravilha, ao passo que horror e repugnância em quadros teoricamente mais agradáveis à vista. Pode-se dizer que é uma visão relativista, simplista de minha parte, mas eu não acho. A beleza é uma experiência singular, insondavelmente singular, um dos poucos bastiões em que as convenções entram, mas não conseguem impor verdadeiramente a sua égide.

Evidentemente, há outros aspectos e significados, para o título e, notadamente, para os textos que compõem o livro. Por isso evito ao máximo dar qualquer parecer sobre seu conteúdo. Perguntam-me, vez ou outra, o que é verdade e o que não é, quem é Fulana, quem não é, o que eu quis dizer com tal frase ou tal palavra. Não respondo porque, na minha opinião, a partir do momento em que o texto foi finalizado e o livro, publicado, já não é mais uma questão do meu domínio. Qualquer palpite adicional seria interferir negativamente nas múltiplas possibilidades que os poemas e as histórias adquirem quando lidas por pessoas diferentes. O que é legitimamente importante está contido no momento da leitura, no que se pensa e sente naquele instante, nas relações que as palavras vão tecendo com a experiência individual ou, mesmo, social - tanto para quem está com o livro nas mãos, como para quem o escreveu.

O que sei é que, depois de um ano, mais ou menos, de blog, colhendo as sugestões e impressões que ia recebendo, julguei que os textos que tinha em mãos eram suficientes para um livro. Revisei-os, mais tarde tornei a revisá-los, então escrevia outros, deixava de gostar dos iniciais, achava-os imaturos, ridículos, sem a menor coerência. Nessa confusão passei meses, acossado por dúvidas consistentes sobre a qualidade e pertinência do que eu estava fazendo. Não em poucos ensejos pensei em deixar para lá, avaliando tratar-se o projeto de um devaneio, uma forçada de barra.

Devo dizer que foi muito difícil passar da etapa de preparação para a de materialização. A consciência da exposição, em primeiro lugar, assusta bastante. Mais até, a consciência de que não se conseguirá atingir plenamente a expectativa também torna a jornada árdua. Até o último dia antes da liberação para a impressão, martelava na cabeça a eventual falta de algum tema. Talvez seja difícil de explicar, mas o que me incomodava era o risco de deixar passar alguma coisa que eu quisesse expressar, e que somente faria sentido se expresso ali, naquela obra, naquele contexto e tempo específicos. Algo que morreria ou se transmutaria em tal grau que, mais tarde, não mais careceria de reverberação. No cômputo geral, creio que as medidas necessárias para evitar tal possibilidade foram tomadas, pelo menos as que estavam a meu alcance. Por um capricho íntimo, orgulho-me disso. Como estabeleci no prólogo de "A paisagem vem de dentro", sempre escapará um detalhe que fará o livro incompleto, seja um erro gramatical ou uma distorção feroz da lembrança. Em todo caso, o fato de saber que o melhor que pude está registrado naquelas páginas, serve-me como a mais preciosa das recompensas.

Da fase final, que engloba o lançamento em si e as divulgações, enfatizo que a noite de 24 de março de 2011 foi extraordinária. Praticamente todos os amigos estiveram presentes, alguns, inclusive, surpreendendo-me, tanto tempo não os via. Ótimo clima, nada maçante ou cansativo, como ocorre, aqui e ali, em lançamentos de livros. Uma leitura artística encabeçada pelo grande amigo Sérgio Ignácio e a consagrada atriz Tuna Dwek, duas pessoas a quem sempre deverei gratidão. Ponto negativo dessa etapa, o momento difícil que meu avô atravessava, internado no hospital, com a saúde francamente debilitada, além de todos os desdobramentos que a situação geraria no seio familiar.

Família que, a partir de agora, toma o centro das atenções nesta postagem.

Confesso, sem medo de errar, que minha noção de família, como o mel e o açúcar, era mais doce na infância do que é hoje. Libertar-me desta concepção ingênua, que parecia indelével, tem sido muito difícil, sobretudo após a morte do meu avô. Ilustrando a condição, é mais ou menos como se eu vivesse na Lua, flutuando, de repente acordasse na Terra, com os pés grudados no chão, cercado de dedos em riste, martelos de juízes e gigantescas pílulas de Lorax. Pois, de um mundo de relativa compreensão e estabilidade, de aparente respeito pela autodeterminação dos povos, passei para outro cujo ritmo é ditado pelas cobranças, as críticas, a parcialidade, a arrogância, o ranço, a ironia. Privo-me de comentários sobre o absurdo que vejo em relações que não me dizem direto respeito. Na parte que me cabe, todavia, mais que indignação ou revolta, mais até que tristeza, a palavra que resume o sentimento é uma só: 'decepção'. Que profunda decepção deparar com o que tenho testemunhado nos últimos anos. Por motivos que desconheço (e desconheço não por omissão ou ignorância, senão pela solene recusa, da parte dos envolvidos, em pelo menos tentar explicá-los), membros de minha família vêm fazendo, de suas vidas, uma cruzada raivosa e ininterrupta pela defesa de suas posições. Nada mais lhes parece importar que não ver prevalecerem as suas opiniões. Com intransigência, agressividade e criticismo desmedidos, torcem-se como répteis para não voltar atrás. Pisoteiam sem remorso sobre as emoções dos demais. Fazem uso das mais torturantes técnicas de produção de culpa para que triunfem os seus interesses. Sufocam a mais singela manifestação de espontaneidade. Tudo o que me desperta sorriso é tachado de medíocre, ridículo, banal, ultrapassado. E quando digo tudo, não é força de expressão. É tudo mesmo. Uma manchinha de sol não resiste a suas nuvens obscuras.

Em outros páramos, com alguma propriedade dir-se-ia que é do tempo, da idade. Aqui, não é o caso, pelo menos não inteiramente. O que vem ocorrendo resulta da assunção consciente de uma atitude egoísta e belicosa, servindo a fins que, reitero, não posso compreender. Tanto pior, aliás, não é a incompreensão, mas a convivência com a contradição exposta. Afinal, um comportamento que hoje se demonstra rude, detestável, intolerante, sob qualquer lente, injustificável, não anula o amor que sinto por essas pessoas, tampouco o amor que elas devem sentir por mim. Menos ainda apaga vinte anos de laços profundos, laços cuja substância, quero crer, consiste em mais que mera ilusão. Por outro lado, manter-me aferrado ao papel que me designaram, numa eternidade morta e silente, já há algum tempo deixou de ser alternativa. Lamento que eu não tenha saído à semelhança dos modelos que eles idealizavam. Lamento sucumbir à pressão deste rótulo que me grudaram sem permissão, rótulo que afirma que tudo posso, desde que eu queira. Infelizmente, não é bem assim que a realidade funciona. Tenho fraquezas, muitas fraquezas. Mais: tenho vontades. Da mesma forma que não quis ser médico, posso também não querer ser o garoto-prodígio, o que descobre o planeta em intercâmbio, o que fala com todo mundo e é superlegal. Para o bem e para o mal, não sou a versão acabada desse modelo. Tusso, espirro, tropeço, tremo de medo. Esqueço várias coisas que aprendo. Penso com a minha cabeça, não com a dos outros. Se essa discrepância tem, verdadeiramente, mais importância que outros valores e virtudes (os quais, aliás, minha própria família faz questão de ligar publicamente a seu sobrenome, com um ufanismo à Galvão Bueno), é de se lamuriar. O fio da história ter-se-á perdido, sem visível recuperação.

Importante salientar que, se teimo em discorrer, até com copiosa freqüência, sobre o tema familiar, é porque ainda o valorizo. Da forma como as coisas caminham, o horizonte é alarmante. Estou cansado de ver tudo virar objeto de disputa, de luta mesquinha por nacos de autocompensação. Farto de que a palavra seja aprisionada, torturada, envilecida, tomada invariavelmente como ataque ou grito de guerra. Fatigado da imposição sumária de fórmulas prontas, com a onisciência presunçosa de quem se julga perfeito e está longe de sê-lo, embora pudesse estar próximo se menos tempo dispendesse em defender sua pretensa infalibilidade. Atraso-me em dizer, mas digo: não sei viver nestes termos. Não quero nem aceito este estado de coisas. O destino, sob as condições que ora imperam, é o afastamento crescente. Seria uma pena, decerto, mas não pena maior que a que venho cumprindo nos últimos anos, encarcerado nas regras volúveis de um jogo sem vencedores.

Dita a safra falida, que se destaque a colheita frondosa. Nem somente de sombras se alimenta o aspecto familiar. Há o lado bom, o lado brilhante. Meu primo João Pedro cresce a olhos vistos e continua o menino bonzinho que sempre foi. A Luna veio ao mundo em outubro e só traz alegria em cada nova expressão que arrisca, cada nova descoberta que faz. O mesmo vale às outras crianças, Mariana, Lucas, Luana. Novas gerações que terão, no futuro, os mesmos debates, as mesmas inquietações sobre seus pais, tios, primos, avós.

Encerrado o capítulo, volto ao livro como referência temporal para dar prosseguimento ao que gostaria de dizer. Um ano após a publicação de "A paisagem vem de dentro", considero que meus objetivos em relação à obra foram plenamente alcançados. Mais que os depoimentos que recebi de quem leu, mais que os elogios e críticas com que tive de lidar, a noite de 24 de março de 2011 fez-me um homem mais seguro. Por mais modesto que tenha sido em termos econômicos e midiáticos, o trabalho de planejar, escrever e publicar esse livro foi transformador. Elucidou-me potenciais e portas que anteriormente não enxergava. Levou-me a contatos com pessoas de diferentes nichos profissionais, de diferentes olhares e perspectivas. Presenteou-me com palavras de confiança vindas de quem tem inteligência e sensibilidade internacionalmente reconhecidas. Além disso, permitiu-me aprofundar relações com pessoas queridas, que tomaram o projeto como se fossem de sua própria autoria. O Sérgio, mencionado em parágrafo anterior, é alguém que se enquadra em todas essas categorias. Da Letícia, que tanto me ajudou a desenvolver a prática da escrita, com seu ouvido paciente e sempre acessível, não poderia me esquecer de quando lhe levei o convite, da emoção e carinho sinceros que em seus olhos cintilaram. Sem dizer da Mainá, que desde o começo deixa seus comentários por aqui, da Isabel, que me fez sentir a pessoa mais especial da aula de italiano, da Telma, que fez o mesmo na aula de francês. Tudo isso fez-me experimentar um crescimento sem par, derivado menos do reconhecimento que obtive no decorrer do processo, que da responsabilidade que esses ganhos me jogaram nos braços. Responsabilidade, aqui, não com o sentido de peso, de obrigação, mas responsabilidade boa, saudável, de quem deseja fazer jus ao afeto e respaldo recebidos.

Nem tudo, entretanto, foram rosas. Se, por um lado, reconheço que alcancei muitas metas desde março passado, entre elas uma melhora considerável no desempenho acadêmico e na capacidade geral de estudos, por outro percebo também a involução em outras esferas. A confecção do livro fez-me entrar em contato com sentimentos muito profundos, tanto mais profundos quanto eram sublimados em formas literárias. Algo que, por seu turno, levou-me a pensar constantemente sobre a falta que me faziam. Ao deixar a medicina, não renunciei apenas a uma possível carreira, a uma possível ocupação profissional. Ficou um vazio esquisito. Meus colegas seguiram suas vidas e eu precisei recomeçar. Com as redes sociais pululando, não consegui nem cortar de uma vez as relações, nem conservá-las intactas. O meio termo, que para diversas matérias é o atalho mais seguro às soluções ponderadas, neste caso fez-se um tormento. Angústia difícil de explicar, uma vez que, ao mesmo tempo em que eu nunca fora o cara da integração, o mestre das relações sociais, sentia-me pertencente, ainda que de forma vaga, ao grupo da faculdade. Com a saída, foi como se um vento limpasse a área e não restasse mais nada daqueles anos. Ninguém se recordava de mim, nada que me ocorria dizia-lhes repeito.

De tempos em tempos, camuflado em ricas e inusitadas alegorias, o mesmo sonho me acomete: retorno à Unicamp, situada sempre em grandes altitudes, cercada por íngremes ladeiras. Caminho longas distâncias, subo e desço escadas, adentro salas, corredores. Contemplo um ou outro ex-colega a trabalhar, cumprimento-os rapidamente, sigo caminhando, não paro um instante, estou desesperado à procura de uma pessoa, preciso dizer-lhe tudo isso antes que seja tarde. Quando finalmente a encontro, ela anda, eu ando, a cena não pára nunca, não há tempo a perder. Conversamos rapidamente, em constante movimento. Do nada, então, ela desaparece, confunde-se à paisagem ou à multidão, entra por uma porta misteriosa, vira outra pessoa, uma amiga, uma funcionária local. No último sonho, eu disse a ela que era importante, urgente o que eu tinha a lhe falar. Ela acreditou e disse que já voltava, rapidinho, coisa de cinco minutos, um problema que precisava resolver e depois conversávamos. Quando foi anoitecendo, quando as árvores, o chão, as paredes foram dissolvendo, quando me dei conta de que ela não voltaria, que era mais uma armadilha, quando abri os olhos e dei com o teto enevoado...

Tenho cá minhas dúvidas se a pessoa recorrente desses sonhos não sou eu mesmo, o que me faria, como diz a música famosa, um caçador de mim. Em parte, creio que seja uma boa interpretação, entre as tantas possíveis. Por outro lado, retirar da personagem seu quinhão seria equivocado. Muito das minhas buscas atuais reflete perdas dessa época de Unicamp. Perdas íntimas, independentes de agentes externos, e perdas ligadas a pessoas reais, de carne e osso. Enquanto estava matriculado, andando diariamente pelo campus, sabia que, até o último dia da graduação, por improvável que fosse partir de mim semelhante ato, teria sempre a opção de dizer o que eu sentia. Ao voltar para São Paulo, uma das conseqüências foi anular definitivamente essa possibilidade. Hoje, minhas palavras não contam absolutamente nada para aquele contexto, que deixou de existir quando peguei o ônibus de volta pela última vez. Mesmo que me dessem o horário nobre de todas as emissoras, as telas de cinema de todo o território nacional para falar, eu iria para casa depois da transmissão e voltaria a sonhar o mesmo pesadelo, o mesmo andar sem fim pelas bordas da ladeira.

Refletir sobre o assunto com sobriedade não deixa de ser um avanço. Colocados em palavras, os problemas parecem mais planos, mais comportados. Porém, e sempre há um porém nessas horas alvissareiras, a sombra do ideal pesa sobre a realidade. Preso a um molde, a um contexto que, como eu mesmo reconheço, deixou de existir em setembro de 2008, não consigo pagar-lhe a fiança devida e gozar a liberdade. Algumas de minhas dificuldades de relacionamento, parcialmente vinculadas à timidez, parcialmente vinculadas a uma certa soberba, parece que só pioraram de uns tempos para cá. A trava vocal dos sonhos reproduz-se em situações concretas. Às vezes quero falar com alguém e simplesmente não consigo. É estranho, porque não obedece a uma lógica inteligível. Se seguisse um padrão, se ocorresse somente em noites de lua cheia, até entenderia. Mas não tem regra. Pior é que, com isso, não apenas me distancio de quem gostaria de me aproximar, como deixo uma imagem que não condiz com aquilo que sinto. Acabo julgado pelo que não falo, pelo que não faço, pelo que não sou.

Muito mais teria a dizer sobre cada um dos assuntos analisados acima. Não obstante, é mister finalizar o texto. Concluo-o esclarecendo por que, no título, mencionei as 210 teses. Semana passada, um professor de História comentou com a classe que, nos anos 80, um pesquisador decidiu proceder a um censo acadêmico sobre as causas aventadas para a queda dos romanos. Terminado o trabalho, chegou ao número de 210 explicações diferentes para o declínio do Império. Repito: 210 explicações distintas para o mesmo acontecimento. Para quem acha que sabe tudo de um tema, de uma disciplina, do aspecto mais minimalista possível da vida, pense 210 vezes antes de pronunciá-lo publicamente. Em um mundo onde vivemos sete bilhões de seres humanos, outros bilhões e trilhões de ordens de grandeza imensuráveis de existências; onde o certo e o errado são definidos na fragilidade das facções que se revezam no poder; onde não sabemos nem se pega bem ou pega mal dar um ovo de Páscoa de presente, já que descobriram que as barras de mesmo peso líquido são mais baratas, é muita petulância querer impor qualquer tipo de conhecimento.

Conhecimento que, amanhã, será a mais estúpida das ignorâncias no entender das novíssimas, mobilizadas consciências.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Era uma vez uma mulher


Mulheres são mesmo criaturas especiais. Afinal, foi uma quem trouxe ao mundo o ente perfeito, excepcionalmente lindo e maravilhoso que sou.

Brincadeiras à parte, conto-lhes uma história, lavrada na carne incorrupta do olho mágico que a amplificou.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Desde que soube que me carregava no ventre, abrigando-me da perfídia reinante lá fora, foi feliz. Uma felicidade gratuita. Felicidade, no entanto, que a preço nenhum venderia, pois preço nenhum saberia compensar. Felicidade que fez óbices intransponíveis reduzirem-se a poeira. Felicidade de roseira pela rosa, de poema pela prosa, de algema pela asa, de instante pelas eras. Felicidade que, mais tarde, em cada célula vibrante gravaria a sua marquinha, terna, tênue, inconfundível, ícone vivo do amor maior. Felicidade que a qualquer dor, qualquer grito, qualquer soluço, sempre volta. Felicidade que segura a minha mão e me abraça, para não doerem tanto as vacinas que a vida me espeta.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Órfã pela vida, não pela morte, desafiou as convenções da sociedade patriarcal e, aos treze anos, foi trabalhar em casa alheia, como empregada doméstica. Mais tarde, Deus me livre, virou telefonista, falava com tudo que era gente, um escândalo! Mais tarde conheceu Dauro, casou, teve filhas. Mais tarde aposentou-se. Às vezes gritava comigo e com meu irmão, pelo barulho que fazíamos. Às vezes deixava que eu batesse no bife com o martelo. Às vezes, quando um carro da polícia despontava na esquina, falava que vinha descendo a rádio-patrulha. Às vezes acho que tínhamos a mesma idade.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Ela acabou de dar à luz uma menina, que é como uma lua-guia na mata escura. Como tudo o que é novo e é primeiro, aquele pedacinho chorão de vida a assusta enormemente. Faz que ela se sinta mais perdida e insegura que na época em que era adolescente. Desperta questões que livro nenhum ensina a responder. Quando eu era pequeno, lembro que ela cuidava com carinho de mim. Cortava-me as unhas, penteava-me o cabelo, jogava videogame. Do meu irmão, então, cuidava com ainda mais zelo, ainda mais jeito, tão bebê ele era. Hoje a vejo com a lua-guia nos braços e penso naqueles tempos. Em como tudo o que aconteceu, teve, sim, os seus propósitos. Em como, embalada em berço de amor, sua criança dorme tranqüila, cresce tudo o que tem de crescer, aprende e apreende os sentidos. Descobre, na medida certa, a imensidão do que a cerca, e assim pode sonhar em paz.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. E que até fica engraçada quando chamada de mulher, pois quando a conheci era apenas uma menina. Uma menina em quem bati os olhos e depressa compreendi a luz que me instigaria. Uma menina com quem poucas, pouquíssimas palavras troquei, mas como se a conhecera de outros planos, outras galáxias, tantas vezes tagarelamos em sonhos que, hoje, também parecem pairar em outros planos, soprar de outros ventos. Uma menina que nem sei mais onde mora, a quem ora, por quem chora.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Foi nela que eu dei meu primeiro beijo - tão esquisito, tão espavorido, tão geometricamente implausível, que ósculo, não beijo. Nela dei também meu segundo beijo - aí, sim, beijo, com todas as letras e línguas, dono de cada torção e rodopio, quente e frio ao mesmo tempo.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Minha primeira dose real de romantismo, também meu primeiro porre, minha primeira ressaca, minha primeira dança, minha primeira jura de vingança.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Quando a tarde caía e o verde das montanhas ia tingindo as águas do mar, ela aparecia, como uma sereia. Em vez de cantar e capturar-me em seus ardis encantadores, seduzia-me de outro modo: deitava-se do meu lado, como uma estrela deita-se no céu, sem dizer uma palavra. E aí passava o rapaz vendendo sorvete, e as crianças corriam atrás dele, e um cachorro corria atrás também, interessado no movimento. E um surfista caminhava em direção às ondas, prancha na mão, enquanto sua namorada procurava na cesta o sortilégio do dia. E uma bola sem gomos corria, um brilho fugaz desprendia-se da ilha fronteira, uma gaivota mergulhava o bico profundo no manto plácido. E Deus aparecia da rua, gorducho, contente, metido no uniforme suado, pedia uma cerveja no quiosque do Cazuza, aprovava tudo com um meneio de cabeça. E você virava de repente e parecia espantada, tem alguma coisa errada acontecendo, eu dizia não tem, agora está tudo certo, agora está tudo no lugar, e você acreditava, era eu, afinal, quem estava dizendo. E você me empurrava no precipício e a seguir me abraçava, para ver que não tinha o que temer. E você sorria, e cada músculo da face sorria também, compunha o rosto levado e bonito que me cativara, que era levado e bonito mesmo quando invocado com a algazarra dos anjos. E nos teletransportávamos para lá do cortejo funerário da bezerra, para além do reino dos selenitas, como dois bicões no espaço sideral, filando o creme dos anéis de Saturno. E eu descobria então por que órbitas você anda atualmente, o que achou do presente e da carta, o que pensava de mim antes de a maré subir e desmanchar o que era para ser uma surpresa.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Corpo sadio e alma bendita que, um dia, dar-me-ão o gosto, honra e completude de uma existência em comunhão, até que vida ou morte nos separe. Matéria e espírito que se unam aos meus e se absolvam e aperfeiçoem em novas matérias e novos espíritos, até os últimos artistas da espécie. Amor mais perpétuo que um voto, mais legítimo que um contrato, mais inoxidável que uma aliança de ouro.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Houve um tempo em que eu não sabia mais se era para felicitá-la ou para me calar nos 8 de março, tal a contundência das reprovações. Algumas bradavam: como foi se esquecer de me chamar para o bolo? Outras vociferavam: não sabe que um dia solitário de homenagens no ano é ainda mais machista que sua falta no calendário? Todo dia é nosso dia! Outras, ainda, lembravam: é simbólico, menino, é tudo simbólico.

Como houve um tempo em que não havia estes símbolos e esta consciência, e um tempo em que ainda não há esta consciência, e um tempo infeliz em que nunca haverá, e um tempo mais infeliz em que tentam inverter o mecanismo ao invés de destruí-lo. E um tempo de mármore sobre as contendas, dúvidas e clichês, e um tempo mágico em que os símbolos serão compreendidos e as nuances, consideradas, e um tempo e um templo em que nada disso terá mais importância, para mim e para todos, pois a pauta estará superada.

08/03/2012