quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Brilho


 













                               (Aos trens da vida).

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O poder do voto


Muitas pessoas dizem para votar certo, votar consciente, votar isso e aquilo. Entendo a ideia, mas discordo de que ela seja possível, por um motivo simples: a razão de existir do voto é exatamente o oposto. 

Uma eleição só faz sentido na medida em que o certo, o consciente, a virtude, tudo isso varia de eleitor para eleitor. A partir do momento em que um discurso reclama para si o monopólio dessas qualidades, já não há escolha: todos que se lhe opõem são errados, inconscientes, viciosos.

Sem esta compreensão de que o poder do voto reside, precisamente, em sua fragilidade, sua inconsistência e, até mesmo, sua insignificância, continuar-se-á falando em democracia no idioma das ditaduras. Na expansão tirânica do "eu" sobre a coletividade.

A liberdade que se deseja para si tem que ser a mesma que se deseja para outrem. Qualquer descompasso nessa equação indica que há correntes tácitas na raiz da ideia. É um dilema que passa longe de candidatos, ideologias e demais clivagens, mais ou menos artificiais, porventura existentes.

Em cento e trinta e um anos de República, entre golpes de Estado e intentonas várias, que a História ora condena, ora relativiza, a sua conveniência, este regime vigente desde 1985 talvez seja o mais estável e inclusivo que já tivemos. E, ainda assim, seu espírito democrático fraqueja diante da ganância dos partidos, dos projetos personalistas, das falsas ilusões, da corrupção, da incompetência. De tal maneira, que talvez não seja absurdo encontrá-lo mais vivo no Parlamento do Segundo Reinado que nos dias atuais, em que hashtags valem mais que ações.

Como sair disso? Não faço ideia. Não quero fazer. Não quero que ninguém acredite que o saiba. Já temos receitas demais conflitando na cena pública. Receitas inúteis, quando a escassez não é de jeitos, mas de farinha.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Timidez


É comum encontrarmos, nas redes sociais, reclamações sobre as limitações exercidas pela sociedade em nossa liberdade. Desde padrões de beleza a disparidades econômicas, vários são os fatores que, de fato, estabelecem algum tipo de restrição sobre o livre florescer das identidades e expressões individuais.

No caso da pessoa tímida, entretanto, muitas vezes nem se chega a semelhante dilema: ela própria atenta contra a sua espontaneidade. Corta as asas de seus desejos, ideias, vontades, sonhos. Perde-se na imaginação e sofre quando é chamada de volta à realidade.

A dor não é somente no nível mental. Dá-se, também, no corpo. Tudo adoece, sem estar doente; esgota-se, sem estar cansado; paralisa, sem estar preso. Qualquer um que tenha passado por circunstâncias assim compreende a agonia de tais emoções. Acaba acostumando-se com elas, adaptando-se a esta forma parcial de viver.

São perdas terríveis, lamentadas por anos e anos, em muitas ocasiões. Ainda assim, há um fruto precioso que se extrai deste processo angustiante. Quem é tímido, com o tempo, percebe com mais nitidez a grandeza das pequenas vitórias. Aprende a dar mais valor a elas. Compreende melhor as pedras do caminho.

Talvez nunca as junte e forme um castelo, como diz uma frase bastante citada na Internet. Mas entende, aos poucos, que elas são apenas pedras, enquanto o caminho... Bem, o caminho, largo ou estreito, segue adiante, ansioso por revelar belas paisagens e novidades, a um olhar cada vez mais grato por estar em movimento.


sexta-feira, 19 de junho de 2020

sábado, 9 de maio de 2020

Vitorioso


Há uma tendência algo natural de pensar em tudo que se perde: as chances, as épocas de ouro, o tempo. Muitas dessas perdas não se superam, passam a morar dentro da gente, espécie de inquilino caloteiro que grita com os vizinhos e perturba a paz do condomínio.

Muitas vezes, muitas mesmo, pergunto-me se há algum sentido nisso tudo. Se a vida não seria melhor com uma política de tolerância zero para com devedores e arruaceiros. Se não valeria mais a pena ser pragmático e viver ao pé da letra.

Então, olho para o céu, para as cores, para a sua despreocupada transitoriedade. Toda a imensidão do que não entendo e nunca saberei.

Olho e, no fundo impossível deste doce alheamento, coberto do entulho de ruínas gloriosas, pois que verdadeiramente amadas e zeladas, considero-me vitorioso.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Saldo


Não sou alguém que conheça tanta gente assim. Contudo, mesmo dentro deste pequeno universo, pude observar, no decorrer de minha vida, pessoas que enfrentaram imensas dificuldades e não se tornaram melhores por isso. Ao contrário, rapidamente voltaram aos velhos hábitos, com um ardor egoísta ainda mais pronunciado.

Neste momento crítico, muita gente se pergunta se algo vai mudar, transposto o caos. Bastante provável que sim. Em termos objetivos, uma série de medidas restritivas serão necessárias quando se findar a quarentena, para evitar novas ondas maciças de contágio.

E em termos subjetivos, haverá mudanças? Também provável que sim. Longe, entretanto, de qualquer despertar geral e redentor.

Circunstâncias como a atual, de profunda incerteza e sofrimento, podem ensinar muita coisa. Mas, a rigor, só ensinam a quem se dispõe a aprender com elas. Aprender de dentro para fora, em um processo absurdamente lento e anfractuoso, personalíssimo em forma e essência. Muito diferente, para não dizer oposto, da reviravolta algo presunçosa que se propagandeia como fim último do drama, simultaneamente utópica e distópica.

Esta noção de que, terminado o confinamento, uma nova consciência há de se elevar irmana-se com a cultura de slogans que tanto mal faz para o enfrentamento de problemas sérios que assolam o mundo (e o Brasil, em particular). Em vez de combatê-los com humildade, realismo e trabalho, de dentro para fora, aceitando a gradualidade inerente às mudanças sustentáveis e dela fazendo um aliado estratégico, opta-se pelo içar de estandartes, gritos de guerra, punhos cerrados.

Mas e depois da adrenalina? De proclamados os compadrios? De cimentada a identidade? Da onda embriagante de auto-indulgência?

Depois disso tudo, o saldo é de aprendizado ou de inércia?

domingo, 29 de março de 2020

Destino


Não me alinho muito com a ideia de que o ser humano vá sair melhor da crise. Entre outras razões, porque, humano sendo, tendo a incorrer no viés de considerar como melhor aquilo que se me assemelhe, o que já me faz, desde o princípio, juiz parcial da pensada evolução.

Sendo muito honesto, não me alinho nem mesmo à ideia de que o ser humano possa ou deva, no atacado, melhorar. Muito, afinal, da grandeza do que a nossa espécie produziu deriva da superação do mal que ela própria sabe causar, não de sua negação. A virtude só faz algum sentido quando convive intimamente, na mesma alma, com o potencial de pecado de que esta é capaz.

Isso dito, pontuaria que há coisas mais simples a se tirar do momento. Se, em vez de uma redenção geral e triunfalista, uma pessoa tomar um tempo para pensar em outra como até hoje não pensara; interessar-se mais proximamente por seu bem-estar; comparar ambas as circunstâncias e lutar para encontrar semelhanças; desejar-lhe um bem qualquer com todo o coração; se apenas isso acontecer, na escala mais discreta que se possa imaginar, já será um acréscimo de bem sem paralelo ao mundo que dividimos.

Não o salvará, desta nem de outras turbulências, mesmo porque tampouco sei se me alinho com a ideia de que o mundo precisa ser salvo, pois voltaria ao dilema inicial, de que, humano sendo, tendo a incorrer no viés de acreditar que a força salvadora saia sempre das minhas hostes, não do inimigo.

E aí já não é história o que faríamos, mas destino, pouco importando o peso da escolha, a liberdade do arbítrio, a saúde, as renúncias, o amor ou as coisas simples, cujo estatuto se alteraria, de forma triste, ao de simples coisas.

quinta-feira, 26 de março de 2020

domingo, 22 de março de 2020

Movimentos


Há alguns dias, uma pessoa que conheço foi levada de casa na ambulância.

Não sou próximo dela, em termos de relação particular; não penso, em absoluto, da mesma forma que ela, adepta de uma visão muito mais à esquerda e mais militante do que a minha. 

Ao ver o reflexo das sirenes, contudo, nada disso me passou pela cabeça. Qual a importância de que não sejamos amigos ou de que não compartilhemos de umas poucas opiniões sobre umas poucas questões de um tempo e lugar igualmente poucos, diante do vasto mistério da vida? Naquele instante, ela era um corpo imerso na luz de uma ambulância, eu era sombra detrás de uma janela.

Em dias difíceis, dias de notícias ruins e de profunda impotência, a maior violência que se pode cometer contra uma alma em dor é cavar o abismo que vigora entre ela e as demais. É forçar a porteira de seu silêncio reparador com gritos histéricos e supérfluas imprecações. Um sofrimento que, em sã emoção, não se deseja a ninguém.

Por maior o cuidado, entretanto, todos estamos sujeitos, por humanos, a fazê-lo. O que não nos impede de lembrar que, em meio à euforia e o ódio das horas comuns, as ambulâncias estacionam na frente das casas, cortinas balouçam mesmo na ausência do vento, e são estes movimentos, não outros, os que nos fazem respirar.

sábado, 21 de março de 2020

SUS


Nos últimos tempos, muitos pronunciamentos pipocaram nas redes sociais sobre a importância de se defender o nosso sistema público de saúde. Como brasileiro que sou, além de ex-aluno de medicina, trata-se de um tema que me interessa bastante. Faz-me refletir sobre a seguinte questão: exaltar o SUS em gritos de guerra corresponde, efetivamente, a defendê-lo?

Consagrada pela Constituição Federal de 1988 e formalizada por lei em 1990, a noção de saúde pública como dever do Estado e direito do cidadão encontra-se há três décadas em vigor. Consiste, penso eu, no maior e mais importante investimento social do Brasil. Afinal, ao contrário de outras iniciativas governamentais, de caráter assistencial-clientelista, em que o beneficiário se vê reduzido a uma espécie de súdito do poder central (com drásticas implicações políticas e até democráticas), o acesso ao SUS dá-se por uma lógica completamente diferente de relação entre poder público e sociedade, marcada por sua natureza impessoal e universalista.

Bastante criticado por suas insuficiências e debilidades, o SUS deveria, sim, ser reconhecido, de forma muito mais ampla, pelos benefícios que produz à população brasileira. O simples fato de conseguir manter as portas abertas, em um país com as nossas dimensões e os nossos problemas, consiste em formidável feito organizacional, cujo mérito me parece ser integralmente devido a seus bravos trabalhadores. Qualquer pessoa sabe os desafios que tais profissionais (todos eles) vêm enfrentando, mesmo nas praças mais desenvolvidas do Brasil: dificuldades salariais, escassez de insumos, superlotação, violência, etc.

Se esta, contudo, é uma realidade vigente desde a sua criação, com um marcado antagonismo entre a incúria dos governos, de um lado, e a dedicação heroica de profissionais da saúde, de outro, será o súbito impulso virtual em defesa do SUS um verdadeiro e espontâneo convite à reflexão, motivado pela epidemia do coronavírus, ou mero atalho para ringues em que se encetam outros gládios?

Admitindo-se que se trate do primeiro caso, uma série de indagações cruciais vêm à mente:

Após três décadas de sua concepção, será que o SUS se encontra no patamar em que verdadeiramente poderia estar, a despeito das naturais dificuldades de um país pobre como o Brasil?

Será que os sucessivos escândalos de corrupção na área da saúde pública não desviaram recursos suficientes para que tal patamar fosse atingido?

Será que a ótima relação de executivos de empresas de saúde privada com políticos de proa, ilustrada por episódios como o de um ex-presidente da República frequentando a casa de praia e usando os jatinhos do maior acionista do setor, tem a ver com as facilidades inúmeras desfrutadas por tais entidades?

Será que se esses planos de saúde praticassem preços minimamente honestos, mais pessoas não os contratariam, diminuindo o universo de pacientes atendidos exclusivamente pelo SUS?

Será que o "Social" da sigla BNDES não justificaria investimentos em saúde muito mais importantes que outras escolhas feitas pela instituição, dentro e fora de nosso território?

Será que o bilionário lucro auferido em cada uma dessas operações duvidosas, por políticos e empresários cuja identidade nada tem de duvidosa, teria aumentado o número de leitos de UTI da rede pública, cuja exiguidade assombra os prognósticos atuais, em face da epidemia?

Será que se parlamentares usassem mais as suas emendas para a área da saúde, pequenas obras em eterno andamento não estariam prontas?

Será que se mais verbas de comunicação oficial fossem direcionadas para campanhas de saúde pública e menos para a promoção de interesses partidários, os próprios cidadãos não utilizariam melhor o SUS, ajudando a descongestioná-lo e, assim, prestar melhores serviços?

Será que a dengue, o zika, o sarampo, a sífilis, entre várias outras doenças evitáveis com prevenção, não contribuem, diariamente, para agravar deficiências do sistema?

Será que a violência assustadora do país não gera sobrecarga nos hospitais?

Será que a imprensa cumpre o seu papel fiscalizador nesta área fulcral, em que tanto a sua atuação faria diferença?

Será, por fim, que a energia dissipada nos gládios outros, a que me referi acima, não estaria melhor empregada, de 1988 até hoje, em evitar que este inquérito precisasse existir?

quarta-feira, 18 de março de 2020

Espetáculo


Muitas pessoas sentem-se pressionadas pela vida. Pelo tempo. Pelas faltas. Pelas escolhas que são obrigadas a fazer.

Sofrem com isso. Às vezes, perdem-se por isso. Veem-se pela metade, porque não lhes contam o outro lado: o que fazem de bom, o quanto são queridas, a beleza que têm.

Na nossa galáxia, deve haver trilhões de estrelas que deixaram de brilhar porque não se viam inteiras. Porque não lhes diziam a luz que eram.

Imaginem o céu da Terra, que espetáculo não daria!

segunda-feira, 16 de março de 2020

Viajar


Viajar pelo tempo cronológico 
Talvez seja impossível 
Então que nunca o seja 

Nas estradas entre olhares 
Nas esquinas entre sonhos 
Nos tempos alternativos 

De um presente 
Quase sempre 
Imprevisível

domingo, 15 de março de 2020

Mirrors


Hoje tive um sonho muito bonito, embora um pouco triste em seu desfecho. Mais ou menos como todo diálogo interrompido não por desejo das partes que se querem bem, mas pelo fato de a vida ser também feita do que não pode acontecer.

Quando acordei, minha mãe estava ouvindo a música Mirrors, que caiu como uma luva para o momento. Tudo, de repente, fez sentido na voz um pouco sentida de Sally Oldfield, que canta encantada, mas como se soubesse, ao mesmo tempo, o caráter provisório de todas as coisas: sonhos, emoções, pesares, realidades. Como se conhecesse, em cada nota, a importância de aproveitar os momentos felizes e não desesperar nos momentos difíceis, porque momentos.

Se existe algo chamado poesia, neste dia que homenageia tal arte, creio que seja exatamente isto: o dom de encontrar sentido até no acaso; de saber que toda sombra assim o é porque existe uma luz, em algum lugar, brilhando forte; de exaltar a gratidão de todo amor, a dádiva de cada dia.

De estar atento, enfim, aos espelhos existentes em cada olhar que passa pelo nosso, inclusive nos sonhos incompletos, neles colhendo (e plantando) a melhor centelha.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Empatia


A noção de que um ser humano pode se colocar no lugar de outro, buscando entender e sentir compaixão pela dor de seu semelhante, consiste em um bem dos mais preciosos que nossa espécie soube conceber. Graças a esta faculdade mental (ou espiritual, a depender do enfoque), muito do que se define como bem, em seu sentido mais puro, existe e se dissemina pela vida, erigindo verdadeiros monumentos à virtude, ao amor, à esperança e à fé.

A forma, contudo, como a empatia tem sido comercializada na grande feira de ilusões da cultura contemporânea – as redes sociais – parece-me radicalmente contrária à essência do termo. Convertida em ferramenta de marketing pessoal, a ideia perde a sua dramática valência de complexidade, própria da tradução existencial entre dois seres distintos, para se transformar em autopromoção. Já não importa mais o esforço, a renúncia, os conflitos, as pontes sempre instáveis, características da dificílima operação de convergência entre as partes envolvidas. O que prevalece é o heroísmo do "eu" empático, pavoneado como evidência de superior moralidade.

É deveras triste que um conceito tão bonito termine sequestrado por lógica assim tacanha. Basta, entretanto, uma estadia de poucos minutos em qualquer plataforma virtual, a fim de atestar o quanto a empatia tem sido usada como símbolo de status, a exemplo de uma roupa de marca ou um automóvel de luxo. A mensagem é clara: eu sou melhor que a ralé; eu vejo o que ninguém vê; persignai-vos, pecadores, perante minha infinita generosidade!

Triste, antes só! Também perigoso. Na falta de empatia, há substitutos razoavelmente capazes de manter certa harmonia social, como a lei, a justiça, a democracia. Nenhuma delas, a bem da verdade, necessita da empatia para funcionar eficientemente. Por outro lado, todas são terrivelmente vulneráveis à proliferação de agentes que se creem moralmente infalíveis – pessoas, partidos, massas, governantes. É assim, aliás, muitas vezes, que morre a política e se espalham os seus zumbis comedores de cérebros.

E é assim, também, que a própria empatia encontra a sua limitação. Sua grande força repousa no fato de se tratar de um processo interno árduo, altamente exigente, do ponto de vista do consumo de energia psíquica. Torná-la mera palavra de ordem, lançada no ventilador das redes sociais como carta coringa, capaz de virar a mesa no jogo das vaidades moralistas, é o mesmo que anulá-la. 

Uma pessoa excessivamente convencida de seu dom empático já não enxerga bem a si mesma. Exigi-lo dos outros seria cair na mais infame das contradições. Entre inúmeros argueiros, porque exigir dos outros, seja qual for o objeto da demanda, constitui, em si, o avesso da empatia.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Penélope


Ontem tive um sonho e hoje passei o dia pensando nele.

Agora que é madrugada, comecei a me perguntar por quê. Não de pensar no sonho, nem de tê-lo, assim, com recorrência, mas dos processos todos pelos quais a minha mente não se cansa de tecer e desmanchar este xale, tal qual uma Penélope, à espera do regresso do herói da odisseia.

Já fui duro demais comigo, tanto quanto fui ingênuo em muitas Troias da minha vida, acreditando em qualquer honra que devesse nortear as batalhas pelo mar. Feri-me por causa disso, rolei pela terra devastada, soçobrei em poças de chuva, irritei deuses e humanos.

Mas voltei.

E, hoje, percebo que não era bem a honra o que me importava. Não era, nem mesmo, glória, riqueza, guerra. 

Era a lealdade. 

Derrota, para mim, não é verter sangue, ser escarrado, passar para a história como um destroço do naufrágio. É trair aquela versão melhor do passado, que acreditava na virtude, que enxergava algo mais que o cinismo das partes litigantes. É esquecer como tudo começou. É transformar esta íngreme, mas tão bela travessia, nos meros passos de um bêbado.

Portanto, sonhe, Penélope! Sonhe, que a vida, ela também, é um coser interminável!

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Bordoadas


Não sei se há sentido em tomar bordoadas da vida, exceto pela pálida, quase indesejada glória de se descobrir que os ferimentos passam, os cacos se juntam e a travessia nos deixa um pouco mais fortes interiormente.

Embora, verdade seja dita, fôssemos bem melhores quando fracos, inglórios e felizes.

(Escrito em 2018, em um mesmo 25 de fevereiro, mas sempre atual).

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Opinião alheia


Talvez esta seja a época histórica em que mais se afirma e repete a consciência de se viver a própria vida livremente, sem ligar para o que os outros pensem ou digam. 

Contraditoriamente, também me parece ser a época em que mais se tem dado importância à opinião alheia, tamanha a batalha discursiva por sua conquista e subjugação.

Não me atreveria a dar diagnósticos sobre o paradoxo, mas entendo que um pouco disso provém de um equívoco de origem. Não ligar para os outros é muito difícil, entes sociais que somos. No extremo, até mesmo perigoso, por tênue a fronteira entre sã individualidade e mesquinho egoísmo.

Muito difícil porque constituir esta fortaleza interior demanda um desprendimento absurdo. Tanto que não é incomum se passar da defesa para o ataque, em uma tentativa desesperada, invariavelmente bélica, de converter o alheio em um reflexo condicionado de si mesmo. A tolerância passa então a ser não mais a complexa neutralização de preconceitos arraigados, mas o grito de guerra de cruzadas sem fim - no tempo e na meta.

Este, pois, o erro de origem: confundir uma peregrinação necessariamente interior com sangrentas batalhas lançadas contra os infiéis.

De modo que, arduíssima empreitada, o caminho de não ligar para a opinião alheia passa pela aceitação não do outro, mas de si mesmo. Dela é que nasce a fé e a força interiores que esteiam as escolhas que fazemos. Não se preocupar com o que dizem não significa calar na marra o mundo à volta, mas ouvir o que sussurra a voz de dentro e, serenamente, nela crer.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Apito


Passei parte da minha vida tentando entender certas coisas e não conseguindo. Achava que era da idade, da pouca experiência, do medo... De qualquer razão externa que, um belo dia, por justiça ou heroísmo, seria deposta para sempre, abrindo caminho para as grandes realizações que me aguardavam logo ali.

Frustrava-me muito, é verdade, a cada insucesso, à aparente tenacidade com que as dúvidas persistiam, impondo-me uma sensação quase física de andar perdido, em círculos. Como se me chocasse contra paredes de um labirinto que não vira ser construído a minha volta, pedra por pedra, ironicamente nutrido da paciência que me faltava.

Não sei quando foi, mas houve um momento em que acordei para a realidade, a difícil, mas necessária, realidade. O fato de que a minha incompreensão talvez nunca fosse ter um fim. A desagradável constatação de que ela era um problema exclusivamente meu. Afinal, "não entendo" é uma oração cujo sujeito, ainda que oculto, permanece sendo eu. 

Nada mudou com a descoberta. Ainda passo parte da minha vida tentando entender certas coisas e não conseguindo. Continuo achando que, em alguma estação futura, hão de descer os passageiros inconvenientes. Sigo, aliás, crendo fielmente que são passageiros, que há um itinerário, um maquinista, um trilho, uma câmara secreta em que aprendo, finalmente, como festejar.

O apito plange, a neblina baixa.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Hiper-opinião


A cultura das redes sociais tem propiciado o crescimento de um fenômeno que entendo como o de hiper-opinião, ou seja, a necessidade premente de se manifestar politicamente a respeito de todos os acontecimentos, polêmicas e declarações que agitam as assoreadas águas da Internet.

A demanda pantagruélica por posicionamento sobre os mais diversos temas, de preferência em tempo real, engendra a formação de verdadeiros parques industriais de opinião. O que faz todo o sentido, já que a grossa maioria das pessoas não possui tempo ou recursos para se pôr a refletir acerca de cada fala, cada gafe, cada comportamento escandaloso de um político, uma celebridade, um jogador de futebol, um empresário, um prisioneiro (quando não são todos uma só figura).

Produzida em grande escala, a opinião torna-se mercadoria padronizada. Pode-se, claro, variar um que outro rótulo, um que outro aromatizante. O processo, contudo, tende à homogeneização. 

O resultado não poderia ser diferente: milhões de pessoas, muitas vezes com pensamentos opostos em sua totalidade, falando e agindo, essencialmente, de igual maneira; reproduzindo, sem qualquer pudor, os mesmos esquemas mentais.

A sensação de conflito permanente, que muitos de nós, brasileiros, experimentamos nos últimos anos, advém, não em baixo grau, da saturação que um tal nível de repetição provoca em qualquer espírito minimamente lúcido. Na medida em que os discursos politizantes, ganhando um espaço muito maior do que lhes caberia no cotidiano saudável de uma sociedade, começam a soar como ladainha, nada trazendo a não ser a reprodução serial de acusações histéricas de cidadãos contra cidadãos, não apenas recrudesce a atitude cínica e indiferente das pessoas em geral, em relação à política e às questões públicas de importância, como se elevam os níveis séricos de raiva e rancor. A politização excessiva, no fim das contas, parece ser uma das mais ativas e eficazes forças antipolíticas – algo de que o populismo se nutre, com apetite desmesurado.     

O que espanta, ao menos no Brasil de 2020, é que a hiper-opinião não se restringe à seara das pendengas virtuais. Tem-se infiltrado, com sucesso alarmante, até mesmo entre acadêmicos, intelectuais, artistas e jornalistas, os quais, sem perder a pose, é claro, untados daquela oleosa pompa com que deslizam sobre a superfície da verdade, abusam da condição privilegiada de coronéis da palavra, que o são, para reforçar as cercas de seus currais.

Quando se fala em combater o ódio, partindo-se, arrogante e equivocadamente, da premissa de que este se encontra em uma latitude e longitude precisas (como no tabuleiro de um jogo de batalha naval), deve-se recordar que o amor é seu antônimo, mas não o seu antídoto. Especialmente quando se trata do ódio público, o ódio que fratura nações e os atira no colo de tiranos, passo fundamental é baixar os níveis séricos de raiva e de rancor, começando-se, por que não, com a quebra do pernicioso ciclo de reprodução hiper-opinativa.

Isto não significa, de modo algum, limitar a liberdade de opinião, cara conquista de nossa civilização. Significa, antes de tudo, restaurá-la a seu devido patamar de glória, ancorando-a, outra vez, na plataforma segura da reflexão real, em contraponto ao torvelinho das ondas virtuais.

Céu!


Nasceu e cresceu
no vale de um longo rio,
como toda fértil civilização

Sorriu e chorou
na febre de um grande amor,
como toda garota em algum verão

Refez-se e brilhou
na aurora de um novo sonho
como toda estrela azul na imensidão

Do meu, seu,
(Céu!)
Bom coração.


quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Banco


Quando a solidão é um sólido, ela ocupa espaço e suas arestas machucam a pele.

Só que, de tanto esperar, ela se liquefaz. E a falta, outrora tenaz, por estranhas ironias, destas que a vida alinhava, preenche, ela própria, o vazio.

O frio passa, o arredio faz graça e o banco, conhecido nas praças mundiais como sonho ou fantasia, não precisa mais de gente, nem mesmo da gente, para se realizar.



segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Presente, passado


Gerações atuais denigrem gerações anteriores, jogam o passado inteiro na vala comum da obscuridade e se declaram os cabeças da vanguarda.

Prometem o paraíso na Terra, arroios de leite e de mel, utopia, movimento, novidade.

Abaixo a opressão!

Vento morno de entressafra, pergunto: haverá algo mais velho que esta tola presunção?

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Núcleo


Algumas pessoas manifestaram estranheza quando eu disse que, de todas as matérias já cursadas, na vida, como aluno, A Célula, do curso de medicina, tinha-me sido a mais marcante. Afinal, pelo próprio caráter introdutório de que se revestia, era raro que alguém se apaixonasse, de maneira fulminante, pela disciplina.

Claro que boa parte deste meu xodó pela biologia celular se deve por considerações sentimentais, atinentes ao período em si e, especialmente, aos três anos subsequentes, que me dispenso comentar, patentes que são em boa parte do que, ainda hoje, exsuda de meus textos. No entanto, mais que mitos e ilusões de um jardim perdido (tanto quanto pedido, no oratório de cada anoitecer), o que me arrebatou no estudo das células foi a semelhança de seu funcionamento com o que, sem saber, o ser humano projetou em sua magnífica obra de transformação do mundo. Os meios de transporte, as linhas de transmissão, a produção e o armazenamento de energia, a ciência da engenharia, tudo isto existe e trabalha, à perfeição, no interior de cada célula. Os mais complexos cálculos daqui de fora, que exigiram milênios de genial saber acumulado para se viabilizarem, estão resolvidos, infinitamente, dentro de nós.

Isolado pela carioteca, o núcleo, centro de inteligência, comanda a vida intracelular e a vida, como um todo. Grandes moléculas só cruzam a fronteira se reconhecidas, através de complexos de poros e sinais específicos de localização. O ambiente nuclear equivale, grosso modo, ao que de mais íntimo guardamos, como pessoas. Nosso último reduto, a que ninguém desautorizado tem acesso.

Estou certo de que, na época, não pensava assim. Com o tempo, contudo, fui percebendo que, disso também, era inevitável extrair uma clara analogia. Uma semelhança que tem a ver diretamente com a pessoa em que me tornei – entre outras razões, por haver feito parte de uma turma que, por doze semanas de sua trajetória, estudou A Célula. Uma imagem que, a rigor, mostrava-me a face do espelho de minhas buscas mais profundas: o núcleo.

Na escrita, nos relacionamentos, nas esperanças, até nos mais frustrantes desastres, o grande horizonte do meu olhar sempre foi o núcleo. Para lá das escarpas políticas, dos conflitos fundiários por cacos de vidro, das inflamatórias diversidades de astuto marketing pessoal, das absurdas máscaras necessárias para sustentar o espetáculo da convivência em sociedade, o que me importa, inspira e também dói, é o lado de lá da carioteca. Quantas noites passei, quantos suores verti, procurando, ora no escuro, ora ofuscado, esta pequena cidadela! Não para invadi-la, não para cobiçá-la, não mesmo, sequer, para lhe insinuar qualquer direito de ingresso.

Para contemplá-la, apenas. Para render tributo a sua beleza eremita. Para, se muito, passar um bilhete por baixo da porta, declinando-lhe o meu mais sincero respeito.

Os medos, os desejos, as mágoas, o amor. O poço em que todas estas forças se encontram e se enfrentam, puxando para as profundezas ou para a luz, quando não ambas. Que importa, diante disso, a cor das paredes, o tipo de pedra, o lado da rosa-dos-ventos para o qual se vira o frontispício?

O núcleo. Aceitar que eu, citoplasma, nunca poderei conhecê-lo e, ao mesmo tempo, amá-lo, como se fôssemos uma única célula. 

Porque é o que somos.

A fanática do nado peito


Pois bem, lá ela aparecia, no final da tarde, descendo furtivamente os degraus da escada, mergulhando e iniciando, como um ritual, o seu peregrino exercício.

Foi assim no primeiro, assim no segundo, assim no terceiro dia, disciplinadamente, como um trabalho essencial que necessitasse de ser entregue a um chefe misterioso, um Poseidon qualquer que, aos olhos meros dos humanos, não se tornasse jamais visível no rejunte dos azulejos.

De um lado para o outro, sem cessar, batendo a mão na borda só o tempo suficiente de virar o corpo e dar início ao novo ciclo. Ignorando os macarrões que flutuavam na superfície, chocando-se contra eles, muitas vezes, desviando-se dos demais banhistas, que, imersos em diversões de futilíssimo alcance, não compreendiam a sua quota de sacrifício pela espécie.

Sempre nadando peito, nunca outro estilo. Braçadas vigorosas, um pouco desajeitadas, às vezes, como todo o corpo, ao emergir d'água. Os olhos abertos, apesar do leve teor salgado da solução em que se deslocava.

Trinta, quarenta minutos. Na memória do observador, contudo – e por que haveria de ser diferente, se a beleza da vida está no olhar? – tempo mais, muito mais.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Piscina


As pessoas na piscina me parecem frequentemente envolvidas em uma aura que as faz mais atrativas do que em outros ambientes.

Tenho lembranças muito antigas desta premissa fundamental da minha imaginação. Desde as minhas primeiras aulas de natação, olhava admirado para colegas e professoras, que pareciam se transformar em criaturas divinais, vindas para este mundo por brechas abertas pelo cloro na estrutura do espaço-tempo, oriundas de um mundo onírico em cuja existência, tantos anos mais tarde, ainda creio sinceramente.

Assim me marcou a menina da touca azul, que dava as suas braçadas avançadas enquanto eu, recém-chegado na piscina grande, ainda me ajustava aos desafios da maior profundidade. Tão serena, tão calma era ela, que me fez compreender, muito cedo, a beleza da harmonia, a importância de certa doçura essencial no olhar, que segui buscando, vida afora, por outras raias e outras águas.

Assim me marcou muita outra gente, que me encantava no vapor e de quem, lá fora, eu lutava para reconhecer os traços, não porque fossem feios ou erráticos, mas porque não se ligavam mais ao azul da piscina, portanto a todo um conjunto de símbolos solenes de minha mitologia pessoal, ativados somente naqueles domínios. Pessoas que conheci bastante, outras que só cumprimentava, outras ainda com quem jamais consegui trocar uma palavra sequer, por razões ou emoções inúmeras.

E assim me marcaram, nos últimos dias, duas outras figuras com quem dividi as águas, embora de ambas não saiba sequer o nome.

A primeira delas chamou a atenção por ser muito bonita. Pelos padrões estéticos vigentes, talvez não viesse a ser confundida com uma modelo, pois estava longe de ser esquálida. Tinha, no entanto, um corpo perfeito, além de certo quê de celebridade. Ficou na piscina por cerca de uma hora, movendo-se vagarosamente, de um lado para o outro. Como não olhava para ninguém, dispensando-se mesmo daquela cortesia natural, comum entre hóspedes de um mesmo hotel, de se saudarem e sorrirem mutuamente, transmitia um ar de indiferente superioridade.

No dia seguinte, contudo, ao vê-la com outros familiares, a impressão mudou. Brincando com o sobrinho pequeno, transfigurou-se de tal maneira, que tive quase certeza de me haver equivocado. O que é mais que natural para quem, observando-a de longe, e não sendo, igualmente, uma pessoa das mais populares, às primeiras (e, às vezes, até oitavas) vistas, nem deveria estar a fazer esses juízos de personalidade.

Fato é que nunca saberei qual a versão real da personagem, se a que caminhava, de cara amarrada, pela piscina, ou a que se divertiu, no dia seguinte, com o risonho menino de boias amarelas. Talvez ambas, talvez nenhuma, talvez não seja, simplesmente, de minha conta, embora a inadimplente fantasia tenha criado histórias que valem por mil verdades.

Volto mais tarde para discorrer sobre a segunda figura, conquanto imagine que a ninguém interesse esta nota informativa de interrupção.