sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Penélope


Ontem tive um sonho e hoje passei o dia pensando nele.

Agora que é madrugada, comecei a me perguntar por quê. Não de pensar no sonho, nem de tê-lo, assim, com recorrência, mas dos processos todos pelos quais a minha mente não se cansa de tecer e desmanchar este xale, tal qual uma Penélope, à espera do regresso do herói da odisseia.

Já fui duro demais comigo, tanto quanto fui ingênuo em muitas Troias da minha vida, acreditando em qualquer honra que devesse nortear as batalhas pelo mar. Feri-me por causa disso, rolei pela terra devastada, soçobrei em poças de chuva, irritei deuses e humanos.

Mas voltei.

E, hoje, percebo que não era bem a honra o que me importava. Não era, nem mesmo, glória, riqueza, guerra. 

Era a lealdade. 

Derrota, para mim, não é verter sangue, ser escarrado, passar para a história como um destroço do naufrágio. É trair aquela versão melhor do passado, que acreditava na virtude, que enxergava algo mais que o cinismo das partes litigantes. É esquecer como tudo começou. É transformar esta íngreme, mas tão bela travessia, nos meros passos de um bêbado.

Portanto, sonhe, Penélope! Sonhe, que a vida, ela também, é um coser interminável!

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Bordoadas


Não sei se há sentido em tomar bordoadas da vida, exceto pela pálida, quase indesejada glória de se descobrir que os ferimentos passam, os cacos se juntam e a travessia nos deixa um pouco mais fortes interiormente.

Embora, verdade seja dita, fôssemos bem melhores quando fracos, inglórios e felizes.

(Escrito em 2018, em um mesmo 25 de fevereiro, mas sempre atual).

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Opinião alheia


Talvez esta seja a época histórica em que mais se afirma e repete a consciência de se viver a própria vida livremente, sem ligar para o que os outros pensem ou digam. 

Contraditoriamente, também me parece ser a época em que mais se tem dado importância à opinião alheia, tamanha a batalha discursiva por sua conquista e subjugação.

Não me atreveria a dar diagnósticos sobre o paradoxo, mas entendo que um pouco disso provém de um equívoco de origem. Não ligar para os outros é muito difícil, entes sociais que somos. No extremo, até mesmo perigoso, por tênue a fronteira entre sã individualidade e mesquinho egoísmo.

Muito difícil porque constituir esta fortaleza interior demanda um desprendimento absurdo. Tanto que não é incomum se passar da defesa para o ataque, em uma tentativa desesperada, invariavelmente bélica, de converter o alheio em um reflexo condicionado de si mesmo. A tolerância passa então a ser não mais a complexa neutralização de preconceitos arraigados, mas o grito de guerra de cruzadas sem fim - no tempo e na meta.

Este, pois, o erro de origem: confundir uma peregrinação necessariamente interior com sangrentas batalhas lançadas contra os infiéis.

De modo que, arduíssima empreitada, o caminho de não ligar para a opinião alheia passa pela aceitação não do outro, mas de si mesmo. Dela é que nasce a fé e a força interiores que esteiam as escolhas que fazemos. Não se preocupar com o que dizem não significa calar na marra o mundo à volta, mas ouvir o que sussurra a voz de dentro e, serenamente, nela crer.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Apito


Passei parte da minha vida tentando entender certas coisas e não conseguindo. Achava que era da idade, da pouca experiência, do medo... De qualquer razão externa que, um belo dia, por justiça ou heroísmo, seria deposta para sempre, abrindo caminho para as grandes realizações que me aguardavam logo ali.

Frustrava-me muito, é verdade, a cada insucesso, à aparente tenacidade com que as dúvidas persistiam, impondo-me uma sensação quase física de andar perdido, em círculos. Como se me chocasse contra paredes de um labirinto que não vira ser construído a minha volta, pedra por pedra, ironicamente nutrido da paciência que me faltava.

Não sei quando foi, mas houve um momento em que acordei para a realidade, a difícil, mas necessária, realidade. O fato de que a minha incompreensão talvez nunca fosse ter um fim. A desagradável constatação de que ela era um problema exclusivamente meu. Afinal, "não entendo" é uma oração cujo sujeito, ainda que oculto, permanece sendo eu. 

Nada mudou com a descoberta. Ainda passo parte da minha vida tentando entender certas coisas e não conseguindo. Continuo achando que, em alguma estação futura, hão de descer os passageiros inconvenientes. Sigo, aliás, crendo fielmente que são passageiros, que há um itinerário, um maquinista, um trilho, uma câmara secreta em que aprendo, finalmente, como festejar.

O apito plange, a neblina baixa.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Hiper-opinião


A cultura das redes sociais tem propiciado o crescimento de um fenômeno que entendo como o de hiper-opinião, ou seja, a necessidade premente de se manifestar politicamente a respeito de todos os acontecimentos, polêmicas e declarações que agitam as assoreadas águas da Internet.

A demanda pantagruélica por posicionamento sobre os mais diversos temas, de preferência em tempo real, engendra a formação de verdadeiros parques industriais de opinião. O que faz todo o sentido, já que a grossa maioria das pessoas não possui tempo ou recursos para se pôr a refletir acerca de cada fala, cada gafe, cada comportamento escandaloso de um político, uma celebridade, um jogador de futebol, um empresário, um prisioneiro (quando não são todos uma só figura).

Produzida em grande escala, a opinião torna-se mercadoria padronizada. Pode-se, claro, variar um que outro rótulo, um que outro aromatizante. O processo, contudo, tende à homogeneização. 

O resultado não poderia ser diferente: milhões de pessoas, muitas vezes com pensamentos opostos em sua totalidade, falando e agindo, essencialmente, de igual maneira; reproduzindo, sem qualquer pudor, os mesmos esquemas mentais.

A sensação de conflito permanente, que muitos de nós, brasileiros, experimentamos nos últimos anos, advém, não em baixo grau, da saturação que um tal nível de repetição provoca em qualquer espírito minimamente lúcido. Na medida em que os discursos politizantes, ganhando um espaço muito maior do que lhes caberia no cotidiano saudável de uma sociedade, começam a soar como ladainha, nada trazendo a não ser a reprodução serial de acusações histéricas de cidadãos contra cidadãos, não apenas recrudesce a atitude cínica e indiferente das pessoas em geral, em relação à política e às questões públicas de importância, como se elevam os níveis séricos de raiva e rancor. A politização excessiva, no fim das contas, parece ser uma das mais ativas e eficazes forças antipolíticas – algo de que o populismo se nutre, com apetite desmesurado.     

O que espanta, ao menos no Brasil de 2020, é que a hiper-opinião não se restringe à seara das pendengas virtuais. Tem-se infiltrado, com sucesso alarmante, até mesmo entre acadêmicos, intelectuais, artistas e jornalistas, os quais, sem perder a pose, é claro, untados daquela oleosa pompa com que deslizam sobre a superfície da verdade, abusam da condição privilegiada de coronéis da palavra, que o são, para reforçar as cercas de seus currais.

Quando se fala em combater o ódio, partindo-se, arrogante e equivocadamente, da premissa de que este se encontra em uma latitude e longitude precisas (como no tabuleiro de um jogo de batalha naval), deve-se recordar que o amor é seu antônimo, mas não o seu antídoto. Especialmente quando se trata do ódio público, o ódio que fratura nações e os atira no colo de tiranos, passo fundamental é baixar os níveis séricos de raiva e de rancor, começando-se, por que não, com a quebra do pernicioso ciclo de reprodução hiper-opinativa.

Isto não significa, de modo algum, limitar a liberdade de opinião, cara conquista de nossa civilização. Significa, antes de tudo, restaurá-la a seu devido patamar de glória, ancorando-a, outra vez, na plataforma segura da reflexão real, em contraponto ao torvelinho das ondas virtuais.

Céu!


Nasceu e cresceu
no vale de um longo rio,
como toda fértil civilização

Sorriu e chorou
na febre de um grande amor,
como toda garota em algum verão

Refez-se e brilhou
na aurora de um novo sonho
como toda estrela azul na imensidão

Do meu, seu,
(Céu!)
Bom coração.