quarta-feira, 25 de março de 2009

Definição


Você vai?
Não sei, e você?
Não sei, depende de você ir ou não. Se você for, eu vou.
Mas não dá pra ir sem mim?
E dá pra ter começo sem ter fim?

Buscando-se um meio termo entre céu e inferno, verão e inverno, Havaianas, gravata e terno. Com régua e compasso, será que eu acho a mediatriz entre a virtude e o pecado? Ação e estado?
"Si no mueve el culo, no se come pescado", conta um sábio provérbio cubano.
Um velho dilema humano.

Na esquina do dever e do desejo, tem um bêbado jogado, estraçalhado pela rotina da rua. Trabalhava numa obra aqui perto de casa e, de repente, se perdeu na vida, ou se encontrou, ou não deu certo alguma investida e a busca se fez desiludida. Sei lá! Sei que jogar uma pá de terra sobre o passado é jogar uma pá de cal sobre a parede pichada. Restaura a fachada, mas não cerra o problema.

E que tem isso com o enredo?

Tem que ver com o fato de acordar cedo, deixar a casa em ordem, meter o pé na lama, sujar a borda do vestido. Espremer os ossos no ônibus lotado, até a lata estufar e ninguém conseguir sequer respirar. Descer, correr, saltar as poças, desviar das cusparadas, como manda o asseio, subir a passarela, descer as escadas, validar o bilhete, cruzar a catraca, trocar de lata. Duas horas no trem, no tráfego estático de homens, odores, horrores, uns poucos sorrisos revigorantes. Dor de cabeça que até lateja, mas ninguém sabe que o que você deseja de verdade é só um pouco de sossego. É a liberdade de Luz del Fuego, acoitada no fluxo inconsciente das femininas veleidades.

É uma vida normal, plena e total, impossível nessa rotina infernal que rende uns míseros trocados. Não passa fome, mas a fome de verdade nunca some, nunca morre, lhe consome a paciência, fome enorme que não tem nome.

Você gosta de mim?
Claro que gosto, ué. Que pergunta?
Mas gosta como?
Gosto do jeito que se gosta de uma pessoa que a gente gosta.
E isso lá é resposta???

Treme e dispara,
diz "pára!", coração!
Diz não!

Que a verdade ainda é longe da definição...

sábado, 21 de março de 2009

Engenharia onírica


Lá fora, passos se ouviam.
Gritos se perdiam.
Dentro, promessas repetiam.

A atmosfera era de pânico. Havia algo estranho no ar, diferente de um simples ventar. A qualquer momento, irromperia da parede um braço cheio de tentáculos, disposto a nos devorar em sua lógica carnívora. A qualquer descuido, revólveres apontariam para as nossas cabeças, com sádico e mórbido prazer.

O perigo estava à espreita, sem receita certeira que o combatesse. Daí sairmos, minutos depois, em busca da pizza que, acredito, alguém pediu pelo telefone (quem mais viu o aparelho?). Meu pai e eu, pelas ruas conhecidas do bairro, rumo a um destino prático, hábito sagrado dos sábados e, vez ou outra, também dos domingos.

Na esquina da tal pizzaria, uma sorveteria. Pizzaria e sorveteria? Isso mesmo. Condição sine qua non a se chegar ao balcão das pizzas era passar pela sorveteria. Não havia entrada alternativa. Um ambiente agradável, de luz cálida e amadeirada, donde se via, à direita, um grande freezer, com variedade apetitosa de sabores, e, ao outro extremo, um grupo de humanóides a formar soturno círculo.

Havia conotação sexual naquela horda de proto-homens. Em roda, pareciam chupar seus inefáveis picolés como simulassem grande orgia. Havia também algo de religioso, como cultuassem a divindade totêmica por meio de estranha coreografia corporal. Talvez parecessem, simplesmente, formigas em alvoroço, reunidas em volta de um grande pedaço de comida, deixado cair por acidente.

A pizzaria, em si, era bonita. Havia mesas espalhadas pelo amplo salão, algumas delas já ocupadas. A que conste, já estava então sozinho, que os sonhos, sabe-se bem, são o sonho de consumo dos diretores de cena, rachando a cuca em busca da harmônica solução ao vai-e-vém das personagens. Do lado de fora, um terraço, igualmente amplo e bonito, que me apressei em conhecer, pela curiosidade que sempre tive com os terraços, dando vista a um lugar que já não era mais meu bairro, tampouco minha cidade.

Colinas e campos abriam-se junto às portas, envoltos pelo véu negro e misterioso da noite fria. Um espetáculo de paisagem, apesar da escuridão. Ali fora, duas moças encontrei, uma gorda e uma magra. A primeira parecia mais simpática que a segunda, mas esta, de semblante mais familiar, foi que me fez aproximar.

Se houve prosa, já não me lembro, nem de que estivemos, porventura, a conversar. Sei que logo ambas sumiram e, de humano, restaram apenas uns poucos vultos, mais ou menos próximos de onde me encontrava, sentados em turma sobre a grama, ao pé de árvores ou conversando em frente à porta externa do restaurante.

No céu, não apenas uma lua brilhava, mas várias. Algumas inteiras, soberanas, cheias e douradas, como olhos femininos de um universo curioso da vida terrestre, qurendo espiar do alto como vamos por aqui. Outras, ocultas detrás das nuvens, espalhando seu brilho em raios, fragmentos. E outras, ainda, de chantilly, em forma de pequenos corações, desenhadas magicamente por uma mão invisível, que fazia seu trabalho ali, ao vivo, para quem quisesse apreciar.

Extasiado, enfeitiçado com aquela maravilha da natureza, meio sentado, meio deitado sobre a grama, senti que sua mão, nívea e real, aproximava-se da minha. Depois seus braços, peitos, pescoço, perfume, coração. Respiração. Lado a lado, rostos dopados, quase colados, olhos persuadidos pelo mistério daquele céu pintado ao vivo, cravado de chantilly e diamantes, senti o que nunca sentira antes.

No cenário mais ideal que alma alguma houvesse já sonhado, com a pessoa mais real que romance algum tivesse já descrito, senti que não podia deixar o dito pelo não dito. Ensejo igual nunca haveria. Em minhas mãos, o dever e o desejo de sancionar a eternidade. Em meus lábios, entre incrédulos e ávidos, a suprema potência de reinventar a humanidade.

B..., eu preciso dizer que te amo!

Susto sem nome afligiu-me o coração.
Passava já bem do meio-dia,
tempo de desembarcar
do trem da fantasia...

Relicário


Quilômetros e quilômetros de distância.
Anos-luz de relevância.

Você tá feliz? Tá ansiosa?
Nervosa?
Cuidou da gripe?
Tá tristinha?
Sozinha?

Tenta sair da linha, quem sabe resolve.
Quem sabe pegar a linha,
olhar meu nome no celular,
ligar.

Responder tudo isso sem eu ter que perguntar.

Há quem diga que a solidão é uma opção.
Um mergulho na escuridão com uma lâmpada de 100.000 watts
bem ao alcance da mão.

Um esforço nunca é vão.

Diz a crônica que um maluco da cabeça comprou duas dúzias de rosas, de todas as cores que se possa imaginar, pra ver se arrancava um sorriso na véspera da Páscoa. Chocolate era muito previsível. Aí, sabe-se lá o que aconteceu, a moça não apareceu. E ele ficou lá, uma hora, duas horas, quinze horas. Sob chuva, sol, luar, até o dia seguinte raiar. Aí, plantou as flores atrás do ponto de ônibus, um pouco além da cerca de arame farpado, formando o mais belo jardim que se vira na cidade.

Quase isso, que quem escreveu a tal crônica fui eu
e só eu, portanto, sei inteira a verdade.

Foram duas rosas,
não duas dúzias,
ambas cor-de-rosa, mesmo,
que quem me conhece,
sabe bem que aqui, pro belo,
vale só rosa e amarelo.

A moça, que era justo você,
naquele dia, de fato, não veio,
mas não esperei tanto assim.

Esperei só até o fim
do horário da sexta-feira,
quando boa parte já se foi
e ficam só os pássaros vespertinos,
os desejos de destinos,
os morcegos, as folhas,
os amantes e os viajantes.

As rosas, fragrantes, flagrantes, pararam na minha casa, na estante da sala, distante deveras daquelas paragens. Por uns cinco dias, eu olhei, amei e odiei as pobres flores - testemunhas, provas e culpadas do crime de se amar ingenuamente.

Crime da estéril semente.
Pois confesso que o estranho, de verdade, foi quando deixamos de ser diferentes e nos tornamos indiferentes. Queria saber de onde vem essa frieza, essa moleza, essa avareza de sentimentos que nos jogou em pólos opostos da correnteza. Queria entender para onde o vento levou minhas palavras, se o seu ouvido era tão perto e me bastava sussurrar.

O novo é belo, instigante,
está levando-me adiante,
mas cadê seu pé de All Star
a me atazanar?

Cadê o sonho do teu rosto,
tão macio, tão bonito,
a me ninar nas noites negras
que até hoje me amedrontam?

Quando eu tinha medo de alguma coisa, vou te contar um segredo: pensava que não podia mais ter medo, ou não haveria quem te proteger quando fosse a sua vez de temer.

Contar ainda outro segredo: guardo um bilhete que você escreveu, mesmo sabendo que, cada dia que passa, mais a mensagem desbota do papel. Pensava que um dia, anos depois, ia mostrar que ainda o tinha, só pra te deixar feliz. Só pra que visse como eu gosto de verdade de você.

"Só é seu, aquilo que você dá..."
Só é seu, aquilo que você dá..."

Eu dei a alma minha,
que era tudo que eu tinha
e, no entanto, fim da linha:
era ainda muito pouco
a quem, na vida,
perdera a medida
e queria bem mais.

No cais, o apito plangente de um navio a zarpar indicava que a história ainda estava por começar, que a viagem estava por se iniciar.

Esqueceram só de antecipar ao capitão, um velho charlatão, lobo do mar, que havia o risco - mais que sério - da jangada naufragar...

E quem teve a idéia de cruzar o mar com uma jangada?

Quem continua calada, zangada?

Sem saber que
ao fim da estrada,
olha só o contrasenso,
a vontade é retornar...

segunda-feira, 16 de março de 2009

Tempo


O pior do tempo que passa de graça não é o tempo que passou, mas as oportunidades todas que se foram nesta hora dita perdida.

Você queria falar alguma coisa. Era visível. O olhar corria, abaixava, se escondia. Suas mãos nervosas ajeitavam, impacientes, o cabelo, que de sua parte não se ajeitava de jeito nenhum, afinal ventava. Quando saíam dos cabelos, tomavam o rumo das orelhas, dos brincos, dos dedos da mão oposta. A perna não se agüentava quieta debaixo da mesa, havia um sapateado que o restaurante inteiro podia ouvir. O sorriso se acompanhava de um sutil tremor no canto dos lábios, que não sei se só eu via, de tanto ensaiar te ver, ou se os outros também podiam perceber. Era um trejeito seu.

Você queria falar alguma coisa, mas não falou. Achou que a boca estava demais seca, que uma nuvem cobriu a lua bem na hora que saiu à rua, que ainda não tinham ligado pra dizer se tinha ou não passado na audição. Vai saber não eram sinais pra não dizer? Você não disse e, tivesse dito, dia bendito não haveria igual na vida dele, que estava justamente esperando a sua resposta para fazer a pergunta que há muito queria fazer, e desse diálogo ver algo lindo, lindo demais, nascer.

Mas quem sabia que era o dia de dizer?

Você queria ir naquela festa. Esperou dias pelo dia. Adiantou a tarefa do trabalho, a leitura da faculdade, a ida ao centro da cidade. Por três noites seguidas, viu o sol emergindo atrás do prédio vermelhinho, de tijolos. Tudo para ir à tal da festa. Aí, na manhã do sábado, do sábado da festa, ligou uma amiga antiga dizendo que ia ter filho e que o chá de bebê era aquela noite, com as desculpas de só ter avisado assim, em cima da hora, e a sentença obrigatória de presença. Obrigatória, não por imposição, mas porque a amiga, anos antes, fizera-lhe um favor que só amor motivaria e ela, pois, então devia.

Ir à festa, no entanto, era tudo o que queria.

Queria, mas não foi. Ou melhor, até tentou, mas quando chegou, no meio da madrugada, já não havia mais ninguém que interessasse, só gente desconhecida, e visto assim é como não fora. Não foi e, tivesse ido, teria muito se ferido, que o rapaz que a seduzira, seduzira-se por outra, e dor pungente sentiria ao vê-lo inteiro, impunemente, nos braços da rapariga. Não foi e, tivesse ido, não teria conhecido o Professor Aparecido, sogro da amiga e avô do rebento, que viria, anos depois, dar-lhe cargo, voz e assento no conselho da faculdade, abrindo as portas de seu futuro.

Mas quem sabia que era dia de não ir?

O pior do tempo que passa de graça não é sentir que cada segundo adiado nunca mais será vivido. É pensar o que teria sido, caso usufruído. É saber que, qualquer fosse o caminho escolhido, aqui, exatamente, nunca mesmo chegaríamos.

É não saber se teria sido melhor ou pior fazer tudo de novo ao contrário...

quinta-feira, 12 de março de 2009

Confesso, é ingênuo


Engraçado é como o ser humano se vê acuado ao lidar com uma situação que, de tão simples, deixa-o, todavia, deveras enervado: enxergar pelos olhos do outro. Dir-se-á que é impossível, infactível, intangível à razão sentir no peito o alheio coração, mas não é, não. E é fácil de provar. Hoje debateram sobre a situação da Faixa de Gaza dois eminentes professores das ciências humanas e jurídicas - um de procedência israelita e outro de ascendência árabe. Munidos de argumentos consistentes, a certo grau irrefutáveis - tamanha sua lucidez e objetividade  deixaram, ao final da conferência, uma pergunta chave, senão em todos, pelo menos em minha cabeça: como podem dois lados historicamente antagônicos, vetores opostos e, por tal, anulando-se um ao outro, ostentarem, cada qual, verdades tão verdadeiras? Como podem duas versões tão destoantes, tão mutuamente aniquilantes, explicarem o mesmo fato e se manterem vivas, coerentes, plausíveis, se o fato, em si, é um só?

Um só? Será que existe, em essência, um só fato? Existe fato onde há pessoas?

Alertou o palestrante de origem árabe, ao lidar com uma afirmação acerca do caráter 'terrorista' do Hamas, sobre os perigos de chamar com uma palavra assim feroz qualquer pessoa, homem-bomba ou piloto de caça em meio ao conflito. "Chamar alguém de 'terrorista' dá a prerrogativa para matá-lo, para humilhá-lo, para ignorar que ele, ainda ser humano, goza, em tese, dos mesmos direitos humanos das vítimas potenciais de seu futuro ato. Dá a prerrogativa de crer que, sendo ele 'terrorista', são também 'terroristas' seus familiares, seus amigos, seus vizinhos. E assim se explode toda uma comunidade, com as crianças, as mulheres, os animais, os civis desavisados. E a carne que voa é a mesma, seja a bomba um punhado de pólvora envolto em PVC ou o artefato teleguiado eletronicamente pelos dedos do soldado."

A fala não foi exatamente essa, mas quase, e dela se pode muito bem inferir que, sendo terror, numa definição livre e não-acadêmica, o estado de ameaça constante à integridade física, à vida, etc., sem que se esteja em estado franco de conflito, não há diferença entre o medo que assombra o israelense, quanto aos foguetes do Hamas, e o medo dos palestinos com o ruído funesto das bombas caindo. Como se pode muito bem concluir que, não sendo a vida da alçada da Aritmética, morto um ou mortos mil, a dor é exatamente a mesma. É evidente que, juridicamente, historicamente, politicamente, há muitas outras implicações importantes, que vão desde a assimetria da reação israelense, com suas horrendas conseqüências para os palestinos que estão à margem de toda a confusão, à inflexível posição do Hamas em certos aspectos, aos interesses de ambos os lados em que não cesse a desgraça, etc. Isto, entretanto, não vem ao caso.

Vem ao caso que, longe de almejar reduzir conflito de tal magnitude a ponderações assim ingênuas, qualquer esboço, por mínimo que seja, de contorno do problema, passa por esta idéia tola de olhar a partir dos olhos do outro. De perceber que certas coisas não se mensuram e, mais além, certas coisas são universais: dor, medo, esperança, angústia, pele, pulso, sangue, lágrimas... Vida. Qualquer esboço de contorno do problema passa pela atitude amistosa que os dois debatedores, fiéis a suas crenças talvez até mais que aqueles que se digladiam na Terra Santa, esses dois, ao olhar para o outro, enxergam-se, um pouco, dentro deste outro. E, ainda que não consigam cumprir, por inteiro, tamanho desafio, esforçam-se para compreender as razões deste outro. Para pensar, um instante que seja, como seria a vida do lado de lá do muro, detrás de inúmeros cadeados e restrições.

Como seria ficar para sempre trancafiado, sem nem direito a advogado...

Confesso, é ingênuo.