domingo, 14 de dezembro de 2008

Sonho


Por um instante, senti revelado o mistério da vida. O milagre da vida. Senti o frescor da brisa contra a pele, a me dizer por que seguir. Por que sentir. Senti-me estrela em palco montado só para eu brilhar, mais ninguém...
Mas ninguém! Ninguém para contar...

Havia alguém.
Quem?
Não importa.

Importa é que este alguém guardava as chaves do segredo. Importa é que se abriu a porta e eu vi. Eu senti, por esse alguém, quem eu queria ser. Achei o caminho oculto nos desenhos enegrecidos de um mapa que tanta confusão trouxera-me aos dias. Tantos destinos inequívocos sentenciara como certos. Encontrei o que buscava e, melhor de tudo, encontrar fez-me ainda mais desejar o que buscava. Deu-me fome de eternidade, sede de infinitude. Deu-me atitude romântica quando já conformado em equilibrar-me sobre as pedras bambas da realidade.

Quem era, afinal?
Já disse, pouco importa. É tudo simbólico. Quem era talvez não fosse, ou já tivesse sido até demais que eu nem mais quisesse. Quiçá fosse eu mesmo, vestido de saias e madeixas e hipnose no olhar.Importa é que, por linhas tortas, Deus multiplicou o pão da esperança em meu coração. Importa é que Ele derramou vinho no arco da aorta e o que corre agora em minhas veias deixa-me bêbado de vida. Ávido de amar e ser amado, e ser achado, e ser alado. Sair voando como voei pelo céu de uma boca que não beijei, e nem precisaria ter beijado...

Era Deus?
E quem é Deus? Deus sou eu, você, nós, vós, eles... Deus é "a", é "l", é "n"... Perene e solene como os nomes e as letras.

Importa é que, dado momento, a emoção era tanta que me belisquei para atestar a veracidade. E, pior, senti a carne em minhas mãos. Senti o osso, os pêlos. Tive certeza de que estava vivendo o sonho - talvez o mais doce e real dos últimos tempos. Ou melhor, real na sensação, no coração, porque na verdade não fazia o menor sentido. Nem sei como cheguei a crer que fosse possível.

Pobre de ti, quando despertaste, então...
Pobre nada! Foi ótimo.
Masoquista?
haha, de jeito nenhum...

Importa é que sei que não sou nada sem essa atitude romântica. Faz parte de mim, para sorte ou azar, ou nenhuma das alternativas anteriores. E este sonho foi resgatá-la no fundo de um abismo, em meio a sismos e cataclismas. Como disse, deixo que os símbolos sejam só símbolos e valha mesmo a essência.

Valha só o que ficou de presença em sua ausência...

07/12/08

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Bolha


Antes de fazer a escolha
lembre-se que pode bem
ser apenas uma bolha.

E que a qualquer momento,
no ar,
ela vai estourar...

01/11/08

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Busca


A vida vai-se revelando de acordo com os estados de alma e a passagem do tempo, que se definem um ao outro, por natureza, quando não convergem a uma coisa só. E são tantas, as surpresas, tantos, os imprevistos - bons ou ruins - que chega a ser grosseiro acreditar, ainda que por instantes, que já se aprendeu, sentiu, viu ou viveu tudo que se podia.

Não. Nunca será o bastante para atingir semelhante estado. Milênios não se mostrariam suficientes a que um homem, solitário, erguesse a cabeça aos céus e julgasse haver compreendido o que se esconde em sua imensidão. É certo que as experiências se repetem, que os erros cometidos tendem a se transformar em rotina, que o prazer causado por uma sensação ou circunstância se procure, avidamente, perpetuar. Tão certo como vem a noite e muda tudo, e o dia que amanhece já não é o que ficou para trás, por mais parecido que se apresente.

O sofrimento advém muito desta nossa impotência quase trágica em admitir que as coisas do passado não se alteram. Em acatar o fato de que, se não aconteceu, paciência, não vai mais acontecer e pronto. E, se aconteceu, paciência do mesmo jeito, o tempo não é uma fita que volta acionando um botão de controle remoto. Advém também da dificuldade em compreender que as coisas do presente, sim, se alteram, e radicalmente. O que hoje é certeza amanhã pode ser dúvida, como o que hoje é aliado amanhã pode voltar-se contra. A vida, como um todo, é relativa. Nossa ansiedade, uma fome incongruente de absoluto.

Andar entre estas máximas e metáforas é que é complexo. No papel, tudo funciona, fica em um só plano, é linear. Tem estrutura, argumentos, coerência - até na incoerência. Na prática, entretanto, o buraco é mais embaixo. É a vida, bem maior, que se põe em jogo. É a sensação etérea de que só existe uma chance, um caminho, uma via, e que não se tem o direito de errar. É a aflição de compreender os macetes da psique, a que profundezas eles levam, sorrateiramente, para disfarçar os medos reais, para disfarçar a indisposição em enfrentar a realidade, para jogar a pessoa contra si mesma, numa guerra cruenta e silenciosa.

Do conflito, deve mesmo derivar o amadurecimento, que tem seu lado bom e seu lado mau. Problemas grandes tornam-se pequenos, quase insignificantes. Em princípio, por crueldade da psique, que joga os valores no abismo e, em meio ao susto, faz a pessoa esquecer tudo que não seja a queda. Posteriormente, em sentido reverso, como um saldo positivo, se é que assim se possa chamar. A força cresce, os calos crescem, a coragem cresce.

Do medo, aliás, é que vem a coragem, veja só que coisa...

18/11/08

domingo, 16 de novembro de 2008

Crise


De repente, ficou escuro e me vi perdido. Eu, que achava que sabia o que era estar perdido de verdade, não perdia, desta vez, por esperar. O que já era labirinto permaneceu labirinto, sem saída em vista, sem buraquinhos na parede onde pudesse espiar prá fora. Só que ao labirinto juntou-se uma perda de senso, de equilíbrio, de rota. Com o perdão do trocadilho, se andar por este labirinto nunca fora fácil, com uma crise de labirintite, então, tornara-se impossível. Insuportavelmente desesperador.

Tudo ia muito bem, embora não estivesse tudo, de verdade, muito bem. Respirava, nos ares, harmonia, mas por dentro não a sentia penetrando nos pulmões, chegando ao sangue, à mente, ao coração. Minha vida caminhava em Pax Armada, com algum gozo de justiça, mas pouco de liberdade. Sentia que era tarde para tudo que, por motivos vários, deixara de fazer em meu passado. Sentia precisão enorme de mudar muitas coisas, além da superfície, a fim de impedir que tais lacunas se fizessem eternas. Não raras vezes, ensaiei na cabeça o discurso, a atitude, a firmeza. Inspirado em personagens, quis, eu também, virar personagem de histórias de novelas, filmes, músicas, em que tudo dá certo e se supera. Num lampejo fugaz, julguei até que não seria árduo - nunca fora, antes, para mim.

Estava errado. Em xeque, tudo. Um fiapo de vida não escapou do questionamento. Caindo na real, tive a sensação mais dolorosa da minha vida. Eu, que achava que sofrer era chorar uma paixão longe dos olhos, ou não ter o ouvido certo que entendesse o que queriam minhas angústias, deparei-me com algo novo e terrível, e petrifiquei. Senti dores físicas ora reais, ora imaginárias, prostrei-me na cama, achei que o fim estava próximo. Perdi o encanto de enxergar razão nas coisas, até as mais importantes para mim. Recebi, na sala de visitas, a presença da loucura, da morte, da esperança, da solidão, do êxtase, da depressão, da vontade, do medo, da finitude, todas elas brigando e brindando entre si, deixando-me sem entender aonde chegariam nesta dança de paradoxos. Oscilando entre extremos perigosos, fui da alegria ao "nada importa" em questão de dias, agravado o fato pela minha incompreensão e meu temor em que isto se estendesse sem prazo de terminar.

Ainda se estende. Neste instante, não sei quem sou nem o que quero. Tenho uma idéia de que tudo não passe de uma fase ruim, natural neste ciclo de altos e baixos da vida. Detrás da balbúrdia subjetiva, há um fato que me trouxe a este desgaste tenebroso. Um, não: muitos fatos. Grande parte, inclusive, léguas distante do que a maioria pense. E, se eles me trouxeram até aqui, é bem provável que me levem de volta aonde eu estava. Tenho indícios fortes que apontam para isso.

Neste instante, no entanto, tudo continua escuro. Tudo continua estranho. Tudo, uma viagem fora da órbita em que eu estava acostumado a girar. Sem noção do que é viver sem gravidade, estou meio perdido num universo sem estrelas, à procura de algumas que, quem sabe, me orientem aonde ir. Preciso delas, mas nunca acertei seu nome correto, tampouco sua exata posição. Jamais imaginei que a liberdade custasse tão caro, nem que houvesse tantos buracos-negros sugando-me as energias, querendo-me levar a um passeio pelo nada. Sem enxergar, devo dizer que é difícil distinguir as trilhas estelares destes buracos-negros. Ainda não descobri se vale mais ficar parado e esperar que a luz retorne (ou então que a equipe de resgate me encontre) ou errar pelo escuro até acertar. Até achar o brilho desta estrela ao fim do túnel...

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Pérola


"De repente abre-se uma janelinha inesperada numa alma, a gente espia para dentro, mesmo sem querer, e o que vê nos surpreende, dando-nos uma visão diferente desse ser. Como se pode 'julgar' (verbo paranóico que deve ser substituído por 'compreender', mais cristão) um homem só pela fachada da 'casa de seu ser', ou pelas palavras que ele pronuncia na língua cotidiana e imperfeita dos homens? Lembrei-me de que um velho tropeiro um dia me disse: Olhe, moço, ninguém é o que parece. Nem Deus."


Érico Veríssimo - Incidente em Antares, Parte 2, cap. LXXX


Deparando-me, outro dia, com este maravilhoso fragmento da referida obra de Érico Veríssimo, desatei a refletir sobre como, a certo ponto, nos tornamos mesmo vítimas deste hábito pernicioso de rotular as pessoas que nos cercam. Quantas vezes já não nos pegamos traçando conjecturas depreciativas sobre a personalidade deste ou daquele indivíduo unicamente por uma opinião porventura discordante da nossa, ou então por seus trajes, seus trejeitos, seu corte de cabelo, sua risada alta, baixa, muda, em saraivadas, etc.? Quantas vezes não chegamos ao ponto de julgar, no sentido literal da palavra, uma pessoa que mal conhecemos, em função de um momento, uma impressão, um comentário alheio sussurrado em nossos ouvidos? Quantas vezes não lhe imputamos culpas, condutas, pecados originais, marcas de nascença. Sentenças...?

Evidentemente, não se deve negar a força da chamada primeira impressão, que age nas fundações oníricas da nossa intuição, ajudando-nos - muito certeiramente, às vezes - a direcionar o leme da nau neste mar revolto que é a vida. Todavia, chega a ser chocante nossa susceptibilidade à aceitação e, por que não dizer, fabricação dos muitos estereótipos que, posteriormente, vêm dar contorno às diferentes manifestações de preconceito e discriminação. Chocante e, do ponto de vista do indivíduo, do particular, algo simplesmente desastroso, no sentido de nos privar, eventualmente, do convívio e da sabedoria de alguém com muito a dizer e partilhar de seu.

Ninguém é o que parece porque todo mundo, no fundo, esforça-se para adaptar sua essência, sua identidade única e indivisível, a uma imagem que se revele palatável, por assim dizer, à sociedade. Mesmo os mais excêntricos, que gritam através do comportamento alternativo um brado de libertação a nossa sociedade-cárcere, agarram-se ao exotismo de seu comportamento como forma de justificar ao mundo sua suposta inapetência para o jogo das aparências. Exatamente como os tímidos, que, nas palavras de um autor que agora me foge o nome, são os maiores egocêntricos que existem, por imaginar que todos os olhos estão a todo momento voltados para eles.

Escapar a esta tentação do rótulo consiste em tarefa nada fácil. Impossível, em alguns casos, por se tratar de um traço central do caráter humano. Atenuá-la, no entanto, não somente é possível como desejável. Quem de nós, afinal, nunca se surpreendeu com o "outro" que conhecemos depois de uma conversa mais franca? Depois de vivenciar em cumplicidade uma situação de maior delicadeza? Depois de se permitir conhecer e de permitir, a si mesmo, imergir sem medo na imensidão escondida dentro deste "outro"? Até como auto-crítica, afirmo que isto me aconteceu muitas vezes e deveria ter acontecido muitas outras mais.

Afinal, se existe, de fato, uma pérola em cada um de nós, ela só valerá alguma coisa quando revelada ao mundo. Nem que este mundo seja apenas (apenas?) as pessoas que nos cercam, que nos amam, que amamos e que, por algum motivo misterioso, mas forte demais, desejamos desesperadamente amar...

04/11/08

sábado, 11 de outubro de 2008

Hoje


Hoje, ficou para trás o eco de uma porta para sempre fechada. Ficou para trás a poeira na estrada. Ficou a estrada, o extrato, o estribilho. Anos mais velho, ficou o filho. Triste e opaco, seu brilho.

Hoje, ficou para trás a coragem do exílio. Bateu o medo, logo cedo. Não cedo, mas também não insisto. Ficou para trás o imprevisto. O improvável. O abominável temor de não dar passo à frente. Ficou um pedaço da gente maior que o inteiro da gente. A essência dormente. O grito latente.

Hoje, ficou para trás mais do que se queria, menos que se dizia. Ficou sem terminar, a poesia. Ficou a alegria, a autarquia, a agonia. A ambrosia. Ficou tonta, a fantasia. Atonitamente afônica. Ficou a desilusão crônica com a passagem do tempo, que mais empata que desata, mais aperta que liberta, mais assassina que ensina. Ficou a sina a que se destina o enredo. Ficou por se contar o segredo.

Hoje, ficou para trás a rosa que não te dei, e agora nem sei mais se um dia poderei. Ficou o desejo de romper o céu. Ficou a marca de tinta no papel. Ficou o sonho à deriva. Espero que sobreviva. Ficou para sempre um nó no peito. Do outro lado da janela, ficou sem jeito a lembrança da donzela. De todas, a mais bela. Ficou quieta, a querela. Ficou dela alguma coisa em mim, enfim.

Hoje, ficou para trás a surpresa. A silhueta de um corpo feminino. Um perfume fino. Um desalinho. Ficou a nota de uma sinfonia que não vai tocar. Ficou no ar a dúvida, a dívida, a dádiva. Díspares rastros. A luz de distantes astros, destoantes estros, discordantes fachos. Ficou o fogo dos cabelos na cantiga.

Hoje, ficou para trás muito mais. Ficou um X onde enterraram o tesouro. Nos olhos de ouro da menina, ficou confessa uma promessa. Ficou o reflexo de um passarinho - e seus pulinhos - na piscina cristalina de minh'alma. Ficaram, lado a lado, calma e arrebatamento, causa e movimento, crime e julgamento. Ficou o barulho do vento soprando a nossa canção. Pelo sim, pelo não, ficou um vão no véu do tempo. Ficou imóvel, o tempo.

Hoje ficou para trás. Nunca mais o encontrarás.

Hoje, sempre, um mesmo dia. Um novo dia.

Hoje, uma folia que amanhã, pela manhã,

Já se respira...

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Solidão


Tenho uma família unida. Uma família feliz. Fechada na dor e aberta no amor. Tenho a necessária unidade para não cair quando estiver a oscilar. Gente boa nos extremos segurando as pontas. Fazendo tudo que é conta pra que eu possa caminhar sem medo de tropeçar. Tive e tenho sorte, muita sorte.

Estou sozinho.

Tenho amigos poucos, mas puros, presentes, pacientes. Pessoas que superam seus limites somente para me ensinar depois que também é possível superar os meus. Tenho amigos que nem conheço e que, no entanto, oram por mim toda noite. Pedem-me força, energia, calma. Rezam para que minha alma se estabeleça onde bem queira, livre de fardos e feridas, ou então que voe, apenas, e pare de sonho em sonho, embaralhando as cartas.

Estou sozinho.

Tenho colegas que ignoram minha existência e outros que, do nada, surgem, mostram seu apreço, viram-se do avesso e me envergonham de eu ainda não os ter notado. Tenho cúmplices e testemunhas que ficaram anos na sombra, à espreita, vigiando-me, e hoje combatem ferozmente entre si, determinando a que lado deve pender a balança de minha consciência. Tenho doze bilhões de olhos sobre mim.

Estou sozinho.

Tenho dívidas intermináveis com pessoas de quem corro atrás. Não as alcanço nunca mais, acho. Não tenho certeza se a dívida é com elas ou comigo mesmo. Tenho também pessoas mágicas correndo atrás de mim, mas não consigo fugir da raia em que estou correndo, nem consigo diminuir o passo. Elas também não poderão me alcançar. A maratona é eterna. Não existe linha de chegada. Dura o tempo que o tempo passar.

Estou sozinho.

Tenho paixão por duas pessoas que não combinam nem se entendem comigo. Mas, se não combinam nem se entendem, como, então, paixão? Sei lá, combinavam e se entendiam, agora não mais. Tenho amor por muitas outras, correspondido ou não. O amor é uma força mutante, sempre cabe mais no coração. Mutante e infinito. Amar é bonito. Meu amor é bonito e único, e sabe disso.

Estou sozinho.

Tenho uma música que escutava todo dia na época mais perdida da minha vida. Dias lindos e terríveis. Noites úmidas de um inverno que ficou no coração e não deixou mais a primavera florir os campos. Tempos em que eu andava distraído e tanto me fazia aonde ia a cabeça, pois tinha certeza de que chegaria ao meu destino. Tempos em que só um destino era possível. Ele não foi e, até hoje, meus olhos se enchem d'água ao ouvir a canção.

Estou sozinho.

Tenho, agora, tudo e todos de que preciso para ir em busca do que ainda me falta. Não é muito, nem é pouco, nem espero que um dia alcance a plenitude - ou perderia a graça. Tenho problemas e vazios, novos e antigos, para enfrentar e preencher. Tenho mil motivos para viver e uma pequena multidão nas arquibancadas vibrando com minhas jogadas.

Ainda assim, perdido em mim,

Estou sozinho...

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Às vezes


Às vezes, tenho certeza.
Às vezes, não.
Às vezes, nada, nada mesmo. Fico sozinho e mão nenhuma se me estende, chão nenhum se me suspende. Nada se entende. Nada me segura.

Às vezes, sinto segurança de que tudo vai mudar. Mas mudar pra quê, se está tão bom? Se está tão bom, por que, então, o desespero? Por que a saudade? Por que a dor de não ter acompanhado o ritmo daquelas pernas, que subiam e desciam as escadas correndo por toda a casa? De ter permitido o esboço de uma coisa novelesca?

Não era novelesco. Parecia-me o contrário. Tão frágil, tão real, tão acima do bem e do mal, que não tive como escapar. Aconteceu, simplesmente, como acontece do sol se pôr, do pássaro cantar, do rio correr, da onda quebrar.

Vai... Tinha, sim, alguma coisa medieval. Quase ridícula. E digo quase pra te poupar de um vexame maior (tenho pena e te gosto, sabes bem). Esse complexo de príncipe que te persegue. Essa obsessão de saber, de entender, de se proteger. É um personagem. Uma alegoria que não leva a lugar algum. Não existem mais salões. Não existem mais bilhetes. Não existem mais fugas por veredas desertas. Não entendo aonde queres chegar assim...

Nem eu. São tantas diferenças, tanta loucura destilada, tanta vergonha, que também me questiono se o que quero é isso mesmo ou se me valho desse pseudodesejo por medo de algo maior. Às vezes, tenho a sensação de que quero tudo, até a última gota do canudo. Acabo sem nada. Um único elo unindo-me ao espelho onde me veria por inteiro e aprenderia como modelar o meu cabelo.

Às vezes, o erro está no querer, não no viver. Menos ambição e mais emoção já seria um bom lema em que te fiares. Uma algema de que te libertares. Se o sentido está mesmo no outro, deixa os sentidos gritarem, então. Deixa que se assustem, se acovardem, se acostumem, se acompanhem, se amparem. Deixa depois que se reclamem, se resgatem, se revivam, se respinguem, se responsabilizem. Deixa ver o que eles dizem...

Volto para o começo: tivera me ajeitado naquele banco de madeira, meia horinha antes, não precisaria toda essa conversa. Juro que não...

Às vezes, era melhor não ter sido eu mesmo.
Era melhor ter fingido um papel, olhado pro céu e respirado fundo.
Às vezes, era melhor ter me perdido do mundo...

Dias de chuva


Os dias de chuva são escuros.
Os dias de chuva são melancólicos.
Os dias de chuva remetem a um trauma antigo, que assustou os ancestrais e demoveu os primeiros tiranos da Terra.

Os dias de chuva confrontam nossas mais cruas agonias.
Levam-nos a perambular pela casa, de um lado a outro, em busca de resposta a perguntas vãs: "Onde está o chinelo?"
"Onde está o sol?"
"Onde está este que pergunta pelo sol e os chinelos?"

Os dias de chuva questionam a autoridade que nos é imposta.
Convidam a gente a dormir, depois a sonhar, depois a embarcar por uma viagem em que tudo é permitido, tudo é possível. Anseios do passado estampam-se no vestido esvoaçante dos desejos que ainda não se consumaram. O vento bate no topo do penhasco e, embaixo, o mar quebra violentamente suas ondas. Eternamente, seus torpores.

Os dias de chuva convidam-nos a despertar. A remoer o vazio que fica do sonho. A ausência do que não existe. O temor de monstros com rosto de bichano e dentes de lobo faminto, à espreita da primeira vítima desavisada.

Os dias de chuva aprisionam os arroubos e sufocam os disparos. As balas estouram no peito e dilaceram o pouco que resta de vida. O coração bate mais por rotina que por paixão. É um sobrevivente sem perspectivas de salvamento. Acredita na superação, mas não na redenção.

Os dias de chuva lembram o que a pessoa era ontem e quem se revelou ser hoje. Acenam de longe e sussurram no ouvido uma coisa que não se entende, nem é para se entender. Confundem-nos para exercer seu domínio. Exercer seu fascínio.

Os dias de chuva são uma procura. Uma busca pelo encontro consigo. Uma busca por não se sabe quê, mas que se justifica sem precisar de argumento sólido. São um invento sórdido. Uma vingança tramada para confinar o homem e colocá-lo diante do mais trágico tormento: o próprio homem.

Os dias de chuva são pesados.
Os dias de chuva são pausados.
Os dias de chuva são pregados
na cruz suprema dos martírios.

Os dias de chuva prenunciam os dias de sol, que prenunciam os dias de chuva. Fecundam a terra e a alma. Lavam as laivas, levam as chagas. Nutrem o ciclo.

Os dias de chuva...
A vida.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Amor


Amor

Se é amor, que seja verdadeiro
E não tenha paradeiro
Dane-se a previdência
Tome-se uma providência

Se é amor, que seja em duas mãos,
Caso contrário, não.
Chame-se de outro nome
Foge daqui e some.

Se é amor, que não se esconda
No arrebate da primeira onda
Firme-se o pé na areia
Quebre-se esta cadeia.

Se é amor, que se perceba
Antes que se nos beba
Calem-se logo as vozes
Unam-se em si, ferozes.

Se é amor, que não se apague o passo
Nem se apegue ao laço
Deixem-se os temores
Rompam-se os pudores

Se é amor, que se diga de uma vez,
Enquanto ainda se tem voz.
Virem, de novo, meninos
Cumpram-se velhos destinos...

Allan - 29/09/08

sábado, 27 de setembro de 2008

Afinidade


Afinidade

Conhecer seu lado errado
Um pouco desajeitado
Rir das suas manias
Deitar minhas mãos frias
Na sua pele quente

Ouvi-la insistentemente
Teimar que tem a razão
Inventar-lhe novos sons
Esboçar-lhe níveos tons
Massagear seu cabelo

Contemplar com máximo zelo
Cada pedaço de seu ser
Em seu corpo compreender
A essência do paraíso
O movimento preciso

Caminhar em um dia nublado
Só com você do meu lado
Mais ninguém
Pois se mais gente tem
É como se não houvesse

Rezar ao mar uma prece
Sentir o beijo d'água na areia
Enredar-me em sua teia
Fazer-lhe um carinho nas costas
Achar em você as respostas

O porquê das verdes encostas
Pensar na cara linda do meu filho
Se ele herdar no rosto esse seu brilho
Prender o pingente em seu pescoço
Esquecer para sempre o almoço

Alimentar-me apenas da sua voz
Dormir e sonhar, após
E o sonho ser tão real
E a realidade tão carnal
Que o limite seja um detalhe

Uma estreita e ingênua calhe
Folhas secas sobre o chão
E nossas almas dando-se as mãos
Suspensas sobre a paisagem
Eternas nesta viagem

Allan - 18/08/08

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Mantra


1. Não adie por muito tempo. Se tiver que fazer, faça. Se tiver de dizer, diga. Depois, quando não impossível, fica muito difícil. Depois, tudo mudou. As coisas perdem o efeito. As palavras entram por um ouvido e saem pelo outro.

2. Se não puder acontecer, melhor se convencer o quanto antes. As alternativas são infinitas. Não reconhecer é quase um egoísmo. Não vale a pena levantar da cama sentindo um vazio no peito por causa de um sonho que devia ser verdade há muito tempo.

3. Procure sentido na confusão. Ninguém vê muito além do próprio nariz, não. Todo mundo tem uma razão de ser ou de não ser. Medo, fraqueza, falta de confiança... Intuição. Deixe que a expressão supere a aparência, a sua e a dos outros.

*

Aceitar

Aceitar
Que esse labirinto
Jamais será extinto
Não existe saída
É assim, a vida...

Aceitar
Que certas coisas não são mesmo pra ser
Nunca vão acontecer
Comigo, com o mundo, com você
O que não impede de sofrer

Aceitar
Que o tempo não corre
Apesar da vontade
O tempo não pára
Apesar da saudade

Aceitar
Que é nossa, a fragilidade,
Não uma distorção da verdade
Que é necessário ser forte
Independente da sorte

Aceitar
Que não tem muito segredo além disso
A despeito do rebuliço
Vigente em nossa cabeça
Aconteça o que aconteça

Aceitar
Que deve haver um motivo
Pelo qual sobrevivo
Mas ele é tão longe, tão vago,
Que não vale um afago

Aceitar
Que, aceitemos ou não,
Certas trilhas em nada dão
Melhor, então, mudar a mão
O show não pode parar...

Allan - 24/09/08

Sussurro


A vida muda tanto, e tão rápido, que às vezes o dia amanhece, a gente levanta da cama e é como se, de repente, tudo estivesse diferente. Não foi o mundo que se transformou, nem o tempo que passou depressa demais. Fomos nós que deixamos passar alguma coisa, que não sabemos bem o que é, mas de que sentimos muita falta.

Por isso, é bom, de vez em quando, a gente olhar sem medo para dentro de nós mesmos e nos perguntarmos: está realmente tudo certo? É isso o que queremos para nossa vida? É pra isso que lutamos, que acordamos cedo, que engolimos tantos sapos, que deixamos o orgulho de lado?

Às vezes é bom abrir um pouco mais os olhos. Dá medo, sim, mas logo a gente acostuma. E descobre coisas. Descobre, por exemplo, que nunca vai ser simples, mas às vezes vale a pena estender um pouco o combate, para além de nossas usuais batalhas. Que o desconhecido não morde, porque também tem medo de você, que é igualmente uma incógnita para ele. Que as melhores coisas da vida são óbvias demais pra toda essa complexidade que a gente arma na cabeça, e talvez por isso não as enxerguemos.

Abra os olhos! Não pense pequeno, nem pense que as coisas são assim porque são. Às vezes, um pequeno gesto, ou então uma simples palavra que dizemos, define para sempre o destino de uma vida. Esta palavra pode ser sua.

Diga-a, antes que seja tarde. Antes que o tempo passe mais uma vez diante de nossa imobilidade. Diga-a, por favor, porque ninguém vai dizer por você, e porque a vida é curta e imprevisível demais para nos darmos ao luxo de esperar que as coisas aconteçam sozinhas...