sábado, 27 de julho de 2019

Sábado, 27 de julho


Alguns fenômenos atravessam o tempo e, diria mais, atravessam as portas entre as dimensões. Fazem do real um sonho e, dos sonhos, não exatamente a realidade, mas a verdade, toda ela, singela e delicada como um café saído da máquina.

Poderia, por isso, ir dormir, curtir a espera aleatória pela repetição do enredo onírico. Não o faço. Bato com os pés no chão e não me arrependo, pois me vendo no espelho sei que não sou o mesmo, que a própria estrada já foi recapeada não sei quantas vezes e as ondas que vêm do sol já não provêm da fusão dos mesmos átomos, ainda que o processo seja idêntico, os elementos não se alterem, a chama seja vetusta.

Não vou e não preciso. Dentro de mim o sonho não cede, ele é maior que eu há muito tempo, eu sou um veleiro no seu oceano, brigando com o vento e o amando por me levar, por me vibrar, por me mover. Por que há de ser outro o legado de um sonho, se navegar é o que sempre fizemos e desejamos, o que nos fez rir e chorar?

E, no encontro das águas, ...?

Durma bem, querido mar!
Sonhe lindo, acorde indo
E vindo, voando, visando
À grandeza que rebrilha
Transparente em seu olhar

Mesmo a oitocentos metros de altura
E uns bons anos de lonjura
No horizonte de ternura
Em que a vida se depura
Hei de as ondas encontrar.

sábado, 20 de julho de 2019

Idealizações (Parte 1)


Fui alertado, recentemente, para o divórcio entre as idealizações projetadas na adolescência e os caminhos que a vida toma, em sua fase adulta. Em palavras mais planas, é curioso, mesmo poético, como a mais criativa e fantasiosa imaginação não consegue alcançar a variedade possível de formas em que uma existência se perde e se encontra, repetidamente, à passagem do tempo, tornando a própria idealização, em si, um produto em constante mutação.

Lembro, por exemplo, como lá pelos quinze ou dezesseis anos acalentei, muito seriamente, o desejo de me tornar político. Impressionado pela vivacidade sobeja de nossa democracia, tonificado por aquela deliciosa onipotência juvenil, acreditei que poderia chegar a todos os cargos importantes da República, neles desempenhando o papel redentor que tanto reclamam os inumeráveis problemas de nosso país.

Preparei-me, devo dizer, para tal objetivo. Além de ler os noticiários de Brasília com voracidade, procurei os clássicos, aprimorei a retórica escrita, desenvolvi alguma capacidade argumentativa, versátil o bastante para justificar qualquer porcaria doutrinária. Cheguei, mesmo, a flertar com a arrogância necessária de achar que era possível saber tudo, para, assim, ter na ponta língua a resposta demolidora, o bote certeiro, a última palavra. Desafio nenhum me parecia intransponível, nem mesmo as emanações pútridas dos conchavos e negociatas, sobre as quais, pensava, saberia planar incólume, domando o olfato, até dar o golpe final no mal.

Impossível catalogar de quantas maneiras eu estava equivocado. Sobre a política, sobre o futuro, sobre as limitações da vida e de mim mesmo. A meu favor, o conforto de perceber que não precisei de tantos anos ou pancadas para assimilar a extensão do erro: bastaram umas poucas observações sobre a história da espécie, a complexidade dos dilemas, a ambiguidade dos seres. Bastou compreender que eu não precisava ser prisioneiro perpétuo das minhas idealizações, para cultivá-las com denodo e amor. Estúpido não era tê-las, nem elas se desfazerem ou refazerem, mas eu pretender amoldar o mundo e os homens a seus ditames. Porque o Éden dourado, o mundo perfeito dessas idealizações eram o produto do meu pequeno ego, nada mais. Impô-lo à coletividade, ainda que como mera abstração, seria de uma tal presunção, de um tal totalitarismo, que me alçaria, automaticamente, à condição de tirano absoluto, anulando, de antemão, o sentido mesmo de qualquer idealização, que é a emocionante faculdade humana de ser livre no espírito.

Dar este passo atrás diminuiu-me, é certo, de muitas maneiras. Dei-me conta, em primeiro lugar, de que estou longe, muito longe de dominar qualquer saber, mesmo aqueles a que mais me dedico.  Quanto mais estudo, aliás, mais me pasmo com a imensidão das coisas, mais me curvo à inteligência  flexível da natureza. Se antes admirava, hoje temo, sinceramente, as pessoas imbuídas de certezas messiânicas sobre a vida. Elas não pensam duas vezes. Não hesitam. Tratoram os obstáculos, que, por vezes, nada mais são que os pensamentos e sentimentos divergentes dos seus.

Constatei, igualmente, que meus argumentos não apenas se desmancham facilmente, como, cada vez mais, os quero desmanchados, já que perdi por completo o ímpeto de opinar. Muito mais que em qualquer tempo de minha vida, não tenho, atualmente, a mínima vontade ou pretensão de defender o que penso, tampouco persuadir outras pessoas a me seguirem. Cativa-me, antes, a cautelosa observação dos painéis que se sucedem; a contemplação quase lúdica dos gládios; a convicção, única talvez, de que o panorama é muito mais amplo do que meus olhos podem alcançar.

Consequência imprevista da decadência, deste recuo a uma existência menos segura de si, a renúncia pareceu aliviar-me de um peso. Pareceu, outrossim, abrir-me os olhos para a matéria de que somos feitos. Quando me julgava superior à corrupção; quando acreditava que os meus fins extraordinários justificavam o recurso aos meios ordinários; quando cria, enfim, que a minha ideia de mundo melhor consistia, efetivamente, no melhor possível dos mundos, pensava dispor de uma elevada consciência revolucionária. Estava certo. E por estar certo é que eu estava tão errado. Por estar certo é que hoje compreendo que o conceito físico de revolução, movimento completo em torno de um eixo, demonstra-se tão preciso: ao cabo da explosão e da violência, dos planos mirabolantes, das utopias fatigadas, volta-se ao ponto inicial, com o porém de estarmos todos mais velhos.

Este desvio das minhas vetustas aspirações políticas teve, como dito, simples fontes. Uma delas, que me permito desenvolver doravante, foi o gosto pela escrita. Rapidamente me atentei ao fato de que, para continuar escrevendo como gostaria, precisava ser leal às minhas palavras. Acreditar no que elas diziam. Mesmo na ficção, nos poucos contos fantásticos que até hoje redigi, só podia conceber o prazer e o sentido de escrever se me reconhecesse nas linhas, nos versos, nas imagens. A bem da verdade, não sei fazê-lo de outra maneira. Preciso crer naquilo que escrevo. É imperativo que subsistam, em cada texto, correspondências justamente com as minhas idealizações.

Como estas se tornaram, com o tempo, integralmente introspectivas, a política (e sua aborrecida mania de se meter na vida alheia) perdeu o seu lugar. Para professá-la com proveito, tanto na modalidade praticante como na modalidade militante, duas alternativas me restariam: tornar-me ou excessivamente cínico ou excessivamente crédulo. Uma e outra via não me agradam.

De momento, não ponho fé na existência de uma terceira, que seria a via da moderação, da objetividade, da discussão madura e impessoal de questões concretas do convívio em sociedade. Não serei eu, decerto, o bandeirante que a abrirá nos sertões fanáticos em que ora vivemos, embora torça para que ela venha a lume o quanto antes, afeiçoado que sou ao meu país e a meus compatriotas. Duas décadas já se perderam no Brasil, desde que eu era adolescente. O que menos desejo é que minha afilhada chegue a minha idade com outras duas mais desperdiçadas, embora tudo, infelizmente, indique este destino.

Em breve almejo dar sequência a estes parágrafos, por se tratar o tema abordado de um filão rico em ponderações, divagações, filiando-se muito adequadamente, ademais, ao título do Blog. Afinal, da mesma forma como as paisagens da Terra e do Cosmos se transmudam em ritmo frenético, o mesmo deve ocorrer com as paisagens de dentro, das quais as idealizações constituem, muito certamente, uma das plagas mais fascinantes.

(Agradecimentos à Srta. V. pela proposta da reflexão).