quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Vôlei

 
Não à toa joga vôlei.
 
Quando chega, manchetes garrafais nas linhas dos meus jornais, que dançam entre as notícias sérias que aborrece ler.
 
Quando entra na quadra, impecável no uniforme de treino, saca um punhal e crava-o no peito do planeta. Que, assim, passa a girar no eixo do queixo da menina, no ritmo de sua respiração, na órbita valente de sua ilusão.
 
Quando passa por mim e pisca depois de um ponto disputado, o apito do juiz emudece. A torcida inteira se cala. Apenas o orvalhar das rosas dos seus lábios, a orquestra de cordas dos seus gritos de comemoração, o brilho delicado de quem perde e vence com o mesmo doce encanto no olhar.   
 
Quando vai embora e acena detrás do alambrado, dizendo tchau - um tchau alegre, sublime, sorridente como o sol da manhã - corta o meu coração.
 
Que fica triste, caído, anoitecido. Mas só até ela voltar no dia seguinte e levantar a bola do jeito que ele gosta, driblando os possíveis bloqueios, agigantando-se sobre eles, fazendo-os plataformas para saltos cada vez mais altos.       

Tão altos, que reclamam, chiam, falam que assim não vale, vocês parece que flutuam. E não cansam de dizer que juntos somos capazes de ir beber a água do céu.

*
 
A outra, por seu lado, não é do vôlei. 
 
Nunca pratiquei esporte algum junto com ela. O que não deixa de ser interessante, pois é lembrar seu nome, pensar nos seus olhos de mousse me desafiando, que o jogo começa. Os músculos tremelicam, o coração desanda feito locomotiva desgovernada, a respiração some e vai a mil em menos de um segundo. Corro contra o relógio, salto barreiras de sombra, arremesso discos de vinil na plateia, tomo emprestado arco e flechas de Cupido, combino uma brisa com o vento só para ela ficar feliz e dizer que o tempo está gostoso. Dou tudo que tenho, empenho casa, carro, juras, faço quanto posso e quanto não posso, crio espaços, invento direções, figuro sentidos, mordo o cotovelo com o dente do siso... Nada. 
 
Mais uma partida perdida nas atas sem fim dos registros de mim.      

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Esquisito


Penso se fiz bem em ignorar a multidão de coisas a redor. Este meu desdém para tudo quanto se pinta de sério na vida de uma pessoa. O rol de leituras obrigatórias, rituais de passagem, penhoras sociais, experiências transformadoras, sem os quais, dizem, devemos nos suicidar. O tem de passar por isso porque Fulano disse, tem que fazer aquilo porque não se é jovem para sempre, precisa saber mais que os outros e, principalmente, antes que os outros, não pode desistir nunca, nunca, nunca.

Alguém disse uma vez, ou deve ter dito, que, se conselho fosse bom, ninguém dava de graça. Raciocínio, convenhamos, muito do lógico em um país onde tudo se cobra, e bastante caro. Mas não é este o ponto. A questão vai mais no íntimo: tenho mesmo? Preciso mesmo? Ora, não bastam já as leis ordinárias, a interminável Constituição, o costume das gentes, os mandamentos da fé, a irrequieta voz da consciência, placa daqui, placa dali, seguranças de shopping, guardas de trânsito, anúncios de videntes, propaganda da Unilever, propaganda do governo?

Decolo do plano retórico, aterrisso, lanço no ar as minhas dúvidas... Chamam-me alienado. Com razão, bastante razão, é claro, quem ignora, quem se alheia, quem se insula, não merece alcunha diferente. Alienado. Acha que a vida é brincadeira, parceiro? Acha que pode ficar em cima do muro o tempo todo, com esse sorrisinho presunçoso? Acha que meia dúzia de palavras medíocres resolvem o problema de alguém? Acha que é diferente para você?

Aí é que está: eu acho. Diferente para mim e para cada um. Obrigatório? Para você! Necessário? Para você! Imprescindível? Para você! Para o resto (e somos muitos), a vida é uma brincadeira, todos cabem sobre o muro (que, assim, não separa ninguém), palavras insurgem quartéis e insuflam corações. E, quando não é dia, a vida é uma luta ingrata, o muro segrega povos, as palavras se despejam no esgoto, o sorrisinho presunçoso vira soluço dolorido na garganta. Não porque você diz ou porque tem que ser. Porque é.

Fazem grandes discursos por aí do risco e do mal da alienação. Mas não é com os alienados que se deviam preocupar, não. O maior perigo destes dias são os conscientes. Os que se julgam na vanguarda de tudo quanto é causa e saem se vangloriando dessa liderança, como uma elite intelectual chantagista que, para a saúde dos nervos e o bem do tratamento, não pode ser contrariada. Os que totalitarizam a vida cotidiana com essas máximas pomposas e sem nenhum significado. Os que leem o jornal de ontem e acham que sabem a história. Os que almejam ser livres para amanhã prender os inimigos. Os que fecham a frase e, no seu autoritarismo de baixa caloria, emendam: ponto, fato, assunto superado, página virada, imprensa golpista.

É esquisito ver a democracia nas mãos desses homens, concentrada em supositórios que nos enfiam, periodicamente, para continuarmos acreditando que eles trabalham por ela. É esquisito que nos cobrem para que cobremos, de quem não cobra, que passe a cobrar os outros, e nessa espiral desenfreada de cobrança, ver desenhar-se a peçonha de uma cobra horripilante.

É esquisito que um peixe graúdo morra afogado em alto-mar, mas se a perícia diz... Não será este o infeliz a desmenti-la.

*

Mais uma noite que passo
encarcerado no espaço
onde o sonho me demora
e você já foi embora

Por que não fica uma vez?
Por que tamanha mudez?
Por que não me contemplar
que o seja só pelo olhar?

Responda-me, por favor!
Responda-me, doce flor,
que sentido no luar
se a noite não terminar?

Que sentido no luar senão nos iluminar?

(Para uma flor doce, azeda, grave, leda, linda, que um dia viveu de fotossíntese na luz de um celular e hoje, olha que chique, tem o luar todo para ela).
    

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Floresta


Tem dias que sou capaz de livros inteiros, de cruzar galáxias em veleiros, só com o que vejo e sinto. Brilho tão forte, uma tal jornada de sorte, que do céu chovem rosas e rubis, o povo toma as ruas e canta feliz, cada um casa como quer e com quem quer, homem com homem, mulher com mulher, terráqueos com marcianos, deuses com humanos.

Mas tem também dias que a boca seca e a palavra empaca. Vaca sem leite. Verso sem prosa.
O esforço, então, é gigante.
Como todo gigante, um tanto extravagante - e desastrado. 

Fico vermelho, engasgo, gaguejo. Pareço criança querendo mentir.
Rezo para alguém vir e me pegar no colo, inventar uma descupa, tirar-me dessa fria o mais rápido possível.

Poucos se habilitam. Eu sei como é. Cada um tem já muitos problemas para enfrentar. Não há lugar para mais um. Além de que é deprimente encarar o fraco, cuidar do fraco, juntar seus cacos um a um, sabendo ele irá quebrar depressa a Terra gire. Risco até pire quem se tentar de tentar semelhante insensatez.

Vez por outra, no entanto, que um canto se espraia do mar sepulcro de silêncio. Seu olhar refulge e sei, não sei como, que ele veio me salvar. Não à toa, não por ser a alma boa de Setsuan, não porque o tempo escoa em dutos enquanto o corpo espreme-se em canudos. 

Vem porque sabe que tem dias de Parnaso e dias de esculhambação.
Vem porque sabe dos dias de ser mar e os dias de sertão.
Vem porque sabe dos dias de harpa e os dias de atear fogo.
Vem porque sabe a medida do esforço.
Vem porque sabe que não forço. 

Vem porque, ali à frente, a floresta tem caminhos demais para os sabermos sozinhos, quatro faróis iluminam mais que dois.

A floresta tem segredos demais para os sorvermos sozinhos, para quem contar depois?

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Por enquanto


Mais longe que o sol
e sua luz me atinge
decifrando a esfinge
que ora me devora

Sei que esta hora, em algum lugar, ela está cantando, porque canta como um rio corre ou como o vento sopra. Talvez não se lembre, talvez não me conheça, talvez se esqueça rápido dos nomes e das faces. Talvez não exista uma tarde como aquela, de lábios vermelhos, de laços dourados, de dentes que mordem veias de licor e chocolate. Talvez as pedras não falem, o canoeiro não cruze o quadro remando para o norte, os amigos em comum sejam carteiros ou garis. Talvez proibido ser assim feliz.

Que não passe de um delírio.
Que seja, aliás, lírio, não rosa.
Que seja um bordel ou monastério.
Sério: não muda.

Pois sei que esta hora, em algum lugar, ela está cantando, e eu também estou. E isto basta por enquanto.

Isto basta, por encanto.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Manancial


Quando a represália se espalha
nas áleas da convivência

Quando o silêncio assusta
mais que a sentença injusta

Quando se verte ironia
na ordem do dia

É uma pena.

Uma cena que não deveria ser escrita por ninguém.

Fomos, um dia, manancial farto de amor. Quase de tudo dava nossa fonte. Quase de tudo. E o pouco que não dava, não fazia falta, pois éramos felizes com o que tínhamos. Éramos felizes com o que éramos, com o que poderíamos ser.

A água, porém, deu de jorrar turva. Virou lodo. Barro. Escarro, escárnio, esgoto de bocas que perderam o dom do gosto. Aposto sem frase. Posto sem base. Fase sem fim.

Em mim, sensação de um chão que se condensa enquanto corro.
De mim, morro que virou colina, chama que virou melancólica gota
de parafina.

Gota, gota, gota.

Último fio pulsa, pende, se desprende.

Gota.

Orgulhoso manancial que fomos. Bons tempos que ficaram para trás da cortina de ferro. Berro e ninguém ouve. Talvez não seja para ouvir, nem para gritar. Falta-me ar nas cordas. Nas cordas... Por que tão cedo foste expirar, manancial? Por que não jorraste um pouco mais? Ainda tenho sede, tanta que não imaginas.

Orgulhoso manancial.
Sarcasticamente, fonte seca.