terça-feira, 28 de outubro de 2014

Por ora


As fontes não são nada filosóficas: séries de comédia.
 
Em uma delas, a personagem diz: "eu não esperava nada, não tinha ilusões. Mas isso não significa que ele não pudesse ter o mínimo de educação, de cortesia."
 
Em outra, a personagem adverte: "você não pode dizer aos outros o que eles tem que sentir. Simplesmente não pode".
 
Trata-se de duas frases bastante simbólicas. Bastante reveladoras, eu diria. Em certa dimensão, senhas para uma realidade que enxergo cada vez com mais nitidez, talvez porque o tempo passe; talvez, ironicamente, porque não passe.
 
A falta de educação beira os limites da hecatombe. É incrível como grassa, como se insinua na prática cotidiana de maneira tal que parece irreversível. Se está assim entre pessoas que se conhecem, que guardam relação próxima, como não estará entre estranhos? Uma pergunta retórica, claro, mas de resposta patente à mais superficial das observações. Basta pôr um pé fora de casa. Basta acessar esta rede.
 
Os imperativos, igualmente, difundem-se à velocidade da luz. Já não se quer mais determinar o que você tem que pensar, o que pode ou não dizer. Pretende-se reinar no domínio do sentimento. O inalienável direito ao inconformismo dá lugar a uma patrulha incessante de supostos deveres. Sacrifica-se a variedade, a diferença, os matizes, tudo em nome de discursos que, em vez de alavancar, atravancam o verdadeiro progresso. Choca a profunda tendência à homogeneidade. Espanta a compulsão por posições políticas rígidas, pautadas em slogans, não em ideias; em marketing, não em reflexão; em reprodução, não em elaboração autônoma. É assim na imprensa, assim nas universidades, nos movimentos sociais, nos partidos. Rarefeito o ar dos que se arriscam a questionar, ainda que modestamente, este maniqueísmo em voga. À primeira trombeta, ficam sozinhos na poeira dos prófugos, apontados e marcados por aqueles que se entrincheiram. Não servem, não valem. Infelizmente, sentem. Soberanamente sentem, amam, sofrem.
 
Se vamos falar de mídia, sejamos imparciais. Qual órgão é, verdadeiramente, independente? Qual deles não se sustenta pelo dinheiro das propagandas de algum governo, sobretudo o federal? Qual deles não se pauta pela agenda partidária? Qual deles não fala aquilo que seu público deseja ouvir? Em última instância, qual deles não faz o necessário para manter seus ganhos, às vezes sua sobrevivência? Neste outubro de 2014, não identifico nenhum. Nenhum. Sei disso porque o ouvi da boca de um importante âncora da televisão, mas nem precisaria. A exceção, se existe, não tem ressonância. Ou seja, não é uma revista, um jornal, um canal. É a imprensa. Venal talvez, mas razoavelmente abrangente na soma dos repertórios, o que já é alguma coisa.
 
Se vamos falar de visão crítica, sejamos críticos dela própria. Na sala de aula, todos os alunos pontuam a importância da análise crítica, da observação crítica, da postura crítica perante documentos, interpretações, teorias e afins. Temos que ser críticos. Temos que. E a crítica vai para o espaço no "temos que", prisioneira de mais este clichê, o qual, aberta a porta da sala, grande parte parece esquecer, parece voltar aos gritos de guerra, à catarse das torcidas uniformizadas, aos olhos arregalados e desconexos palavrões diante da lente da câmera.
 
Por que estou dizendo isso, não sei precisar. Quando se é vítima de atitudes mesquinhas, quando se é confrontado com a dimensão de sua absoluta falta de importância perante aqueles por quem se tem sentimento, seja de amizade, consideração, admiração ou um pouco de cada, muita coisa vem à tona. O olhar fica mais aguçado, a pele fica mais sensível para as pequenas verdades particulares que, por conveniência ou paz de alma, mantem-se em latência. Uso as palavras porque neutras a quem não se interessa. Uso este espaço porque não alcanço o sideral.
 
E assim é por ora, sem ilusões, sem intenções, com sinceridade.
 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Crônica aguda dos pequenos ditadores de uma grande nação equivocada

 
Quebrou o espelho porque não aceitava que mais alguém ousasse pronunciar-se, ainda que o mesmo rosto, os mesmos olhares, as mesmas mentiras.
 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Voz

 
Em alguma proporção, as redes sociais deram voz pública a muitas pessoas que não a tinham, o que é algo muito interessante do ponto de vista de liberdade comunicativa. Abrem-se, sem restrições legais momentâneas, discussões de questões políticas, sociais, cívicas, culturais. Parte delas ganha, ocasionalmente, profundidade analítica admirável.
 
Ao mesmo tempo, no entanto, em que o espaço é expandido por esta ferramenta, o refinamento de seu uso parece mover-se na direção contrária. Explica-se: a rede social dá voz, as vozes não conversam, não se engajam na saudável trama de persuasão mútua que define a arte política. Querem mais. Lutam, em carreira desenfreada, para se impor umas sobre as outras, qualquer seja o custo da vitória. Agridem quando contrariadas, acusam quando preteridas, enfiam, goela abaixo da audiência, seus vocábulos incendidos.
 
Esta tentativa constante, ininterrupta e sistemática de domínio por meio das palavras não tem nada a ver com democracia. Guarda, aliás, similitudes alarmantes com processos ditatoriais os mais traiçoeiros. Porque uma ditadura, cabe lembrar, não se impinge apenas com armas, masmorras, polícias secretas. Paralelamente a esta sua face mais crua, ela se alimenta do conflito entre pessoas ditas comuns, legitimando-se como fiadora de uma ordem fictícia. Fomenta o denuncismo entre amigos, vizinhos, colegas de trabalho, e assim divide o fardo da vigilância. Monta seus aparelhos mais opressores justamente nas reentrâncias recônditas do cotidiano, a que poucos dirigem o olhar.
 
Como disse, em recente entrevista, um famoso cantor brasileiro, é possível viver a verdade pessoal, apontá-la, descrevê-la, mesmo escancará-la, sem aquele viés improfícuo e presunçoso de jogá-la na cara de quem quer que seja. É possível brigar, gritar, dar vazão a todo o inconformismo, ira e revolta porventura ebulientes no coração, sem despejá-las sobre indivíduos que, eventualmente, não compactuem do sentimento, não o entendam, até não o aprovem. É possível escrever um monólogo de vinte e quatro horas sem ser egoísta. É possível defender sem atacar, como possível, louvável, virtuoso e digno, atacar sem desrespeitar.
 
Sem esquecer que, do outro lado da tela, carne e sangue não são diferentes. E que, no afã do sonho de um mundo melhor, por vezes se sacrifica este que aqui existe. Imperfeito e iníquo, sim, mas urgentemente real.
 

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Rio

 
O rio, quando canalizado, é expulso da cena cotidiana. Fica por baixo dos nossos assuntos e nossas preocupações, confinado a uma lida melancólica, plangendo murmúrios dolentes pelos ralos da cidade.
 
Então vem a chuva. E chove mais. E chove mais. Os carros boiam, o lixo flutua, as ruas param, o jornalista vai ao êxtase com a audiência batendo recorde. O prefeito novo aparece, acusa o prefeito velho, que acusa o prefeito novo, que promete que vai mudar o que aquele prometera conservar, ou vice-versa. Ambos finalizam sua participação irmanando-se no bordão democrático de que lutam pelo povo, sofrem pelo povo, vivem pelo povo. Os defensores de um atacam os advogados do outro, amaldiçoam-se mutuamente por vinte gerações, indignam-se com a imprensa corrupta, insultam-se gastronomicamente: coxinhas, croquetes, empadas, massas folhadas, não faltam acepipes em tão farto coquetel.
 
No auge da líquida conflagração, é curioso ver como o rio procura de volta o seu curso natural. Como, em meio ao caos, há um quê trágico de beleza neste triunfo da natureza. Como ele nos grita que, à base de concreto e improviso, sua voz não se calará.
 
E o oposto também. Nas secas, a despeito da funesta escassez, o caminho se mantém. É bonito. É esperança. Há uma lógica no solo que, apesar dos pesares, não se verga à ilógica de seu uso predatório, nem se anula facilmente pelos ciclos que independem da urbana ingerência. Uma história que se escreve com o homem, contra ele, a seu despeito e, inclusive, sem ele.
 
Que significado isso tem agora que começa o período eleitoral? Nenhum. E agora que vivemos época de estiagem? Nenhum. E agora que a inflação assusta os brasileiros? Nenhum. E agora que o Dunga fez a primeira convocação? Nenhum. E agora que a USP está em greve? Nenhum. E agora que querem trocar tudo por fibra óptica? Nenhum.
 
E agora que meu aniversário está quase chegando? Ah, aí sim é provável que resida algum significado. Todo ele, talvez. Essa coisa filosófica que dá na gente de pensar que a vida seja esse rio que seca, esse rio que cresce, esse rio que escondem e, de repente, emerge, valente e também incômodo, importuno, deslocado de sua função, graciosamente alheio aos planos e curvos diretores.
 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Virginiano

 
O virginiano é alguém muito paciente. Demais. Irritantemente, dir-se-ia. Um grande ator, deveras, escutando a mesma ladainha pela milésima vez e acusando surpresa, fingindo acreditar na sinceridade de mais uma procissão dos erros.
 
O virginiano é também muito sábio, muito correto, muito ditoso, muito bonito. Capaz de mesclar, em surpreendente profusão de tato e galhardia, o impulso que acicata e a sensatez que conjetura, o fascínio que deslumbra e o juízo que modera. Não fosse a grave falha de se subestimar, o triste pecado de firmar os pés no solo da modéstia, seria perfeito. Valha-me a licença poética das épocas verbais: perfeito, não. Mais-que-perfeito!
 
Apontado injustamente como sujeito inclinado aos cálculos, o virginiano na verdade é uma vítima deles: isolado e ignoto como as variáveis, jogado ora a um lado, ora a outro da equação. Uma letra prisioneira dos números que os humanos tanto gostam de acumular.
 
Entre leão e libra, o virginiano chega a ser um herói nesta sumária, destrambelhada biografia. Herói porque lhe falta vilão, e quão mais difícil faz-se o heroísmo sendo assim. Herói porque, no fim, o leão rugiu, a libra pesou, ou o leão calou, a libra voou, tanto faz. Não acredito em horóscopos mesmo.
 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Compartilhamentos

 
Quando a generalização é o critério, embargam-se as diferenças.
Quando se embargam as diferenças, avilta-se a pluralidade.
Quando se avilta a pluralidade, avulta-se a uniformidade.
Quando se avulta a uniformidade, perde-se a referência do que é uma coisa, o que é outra.
Quando se perde a referência do que é uma coisa, o que é outra, simplesmente tanto faz.
E quando, simplesmente, tanto faz, banalizam-se vidas, triunfam radicalismos, degringolam acordos, explodem violências.

Em outras palavras, grandes atrocidades começam com pequenos, irrefletidos compartilhamentos de lugares-comuns.
 

sábado, 28 de junho de 2014

Comum

 
Sim, existe a Copa logo mais, e me empolgo com ela, porque nasci também para isso. Pode haver vitória, pode haver derrota, em vários níveis, em todos eles, mesmo em nenhum.
 
Sim, haverá partos, partidas, chuvas, sóis, tímidos vestígios, bíblicos semáforos. Sopros contraditórios flertando com peles de toda cor.
 
Sim, virá o cansaço das tentativas em vão, a sensação de déjà vu, a saudade dos sentimentos sem âncora, o gosto salgado do mar.
 
Sim, uma festa será comemorada, uma data será lembrada, um beijo será primeiro, um dedo será erguido, impiedoso. Mesmo um contrato, veja bem, vamos analisar, o sistema está em crise, todos os nossos atendentes estão ocupados, entraremos em contato, agradecemos a sua preferência, desde que não nos perturbe com cobranças de um serviço melhor.
 
Sim, um mundo aí fora, aqui dentro, no cruzamento, e isso é mágico a qualquer tempo.
 
Sim.
 
Muito verdade.
 
Muito e, a despeito dela, de mim, de ti, de cada beleza indomável, cada sorriso improvável brotando da dura parede, hoje é um dia comum. As mesmas horas no relógio, o mesmo tic-tac implacável, que enerva e, irônico, acalma, inerva-se à alma, pontos finais, não o sentimos mais.
 

terça-feira, 10 de junho de 2014

Patrulhas


Quando não institucional, as patrulhas sorrateiras: ironia, crítica, sanha, moral. Fanáticos religiosos contra fanáticos políticos. Hostes em guerra, empunhando seus metais e sangues, destruindo pelo menos dez vidas reais a cada soldado que tomba, indene, das teorias, fustigando a terra com seus dogmas estéreis.
 
Até quando?
 
Até quando serão eles que me dirão onde, como e em que condições posso ser humano? Até quando me tabelarão nessas colunas sem vértebras? Até quando estimarão meu valor esses corretores de consciência, artífices de números que não batem, geômetras de ágonos critérios? "Você é livre, aproveite"! Mas correr como, se a bola de ferro está no sangue, atada a cada molécula de hemoglobina que generosamente me transfundem, segundo a propaganda oficial?
 
Até quando terei que aturar estes inquisidores retintos e seus solenes juramentos? Por que verdade o que eles contam, o que eles querem, o que eles exigem, sob tortura, que os fatos lhes confessem? Por que não posso gostar deste canto sem desgostar do outro, pisar com um pé dentro e outro fora, deixando a porta aberta? Por que a sua, e só a sua, taxonomia? A sua obsessiva mania de classificação?
 
As patrulhas. Você reclama das polícias, dos impostos, dos satélites, das câmeras de insegurança. Certamente há razão nestas queixas, quando gestadas na inviolável dignidade do sentimento íntimo de fadiga ou ira, na legitimidade incorrupta do que fervilha no coração. Você reclama e bota a boca no trombone, no que obra bem; fica em silêncio, no que obra bem; coteja o momento com a história, no que obra bem; olha as estrelas, no que obra bem; ama seu filho, no que obra bem; chupa um sorvete, no que obra bem; toma qualquer decisão de própria lavra, sem o apoio prestativo de blogueiros que passam sermão nos leitores, no que obra divinamente bem.
 
Você reclama, mas, quanto às patrulhas, a culpa já não é do presidente, do governador, do prefeito, do congressista, da imprensa, das elites, dos marginais, da abstrata sociedade, de nenhum desses aí. De nenhum nem de todos, nem de alguns. Pode ter sido um dia, em condições normais de temperatura e pressão. Um tempo distante, distante não em metros, remoto não em anos. De outro quilate a lonjura. Basta um olhar às postagens adjacentes. Quantos imperativos! Quantos julgamentos! Quantas presunções sem provas! Quantas generalizações esdrúxulas satisfazendo egos famintos! Basta sair à rua e ouvir as prescrições infalíveis dos que buzinam seus carros porque o outro cometeu o disparate de deixar o pedestre atravessar. Basta precisar de um serviço público ou até privado. Para além de todas as carências, de todas as microfísicas, de todas as nuances, são pessoas. Pessoas, por Deus do céu, maltratando pessoas, perseguindo pessoas, afligindo pessoas, impondo a pessoas iguais o seu arrogante rosário de certezas.
 
Patrulha é a face ativa da intolerância. E intolerância é quando a vida se torna assim, insuportavelmente cobrada, catalogada, matematizada, sugada por todos os orifícios da sua especialidade, tudo a pretexto de quê? De um pressuposto alheio, notadamente torpe na raiz, cego na finalidade, raso no alcance, obtuso na justificativa, infantil na lógica. Forte, fortíssimo, infelizmente, nos interesses que fundam, nos meios que mobilizam, nas atrozes consequências que perpetram.
 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Eclipse


Caro eclipse,
 
Sei que, esta noite, você esteve por aqui. Não o vi, contudo. Cobriram-no as nuvens na hora precisa, junto a uma fina, fria garoa, feita das lágrimas dessas estrelas mais emotivas que ambos, de longa data, conhecemos e admiramos.
 
Gostaria de tê-lo observado ao vivo? Claro que sim. Quem não quereria? Não culpo as nuvens, porém. Não as censuro. Elas têm os seus motivos. Persigno-me a elas, aliás. Quando ocultam alguma coisa, quando estendem seu manto de carranca pelo céu, é porque os olhos de nós, humanos, devem-se desviar do alto, voltar para outro lugar, outro dos infindos, lindos recantos desta hábil natureza. Para não perdermos de vista que, lá em cima, inércias e movimentos são projeções das danças aqui do chão.
 
Não o vi e, francamente, não significa que não o tenha sentido, ilustre fenômeno. Luas de sangue há aos montes neste corpo e nesta fósmea. Sangue de ferida, sim, mas também sangue de vida, fome, porre, lassos amores, ternos rubores. Se uma, nesta exata linha, sonda-me o rosto, marca-me a bochecha, tinge-me os olhos, faz-me sentir bobo e gigante... Como ser diferente?
 
Consta nas notícias que você, fugaz desvão, repete a apresentação em outubro. Turnê completa, no entanto, só ocorre novamente em 2032. “Longo tempo!”, alguém poderia exclamar. E me veria impelido, com esse nobre orador, a concordar, exceto pelo fato de que o tempo da beleza não é longo nem é curto, é um surto. E, como todo surto, imprevisto e avassalador.
 
Até nos reencontrarmos, desejo-lhe boas novas, preclaro poeta da sombra. Felicidades por esses caminhos tão belos do nosso universo! Em sua homenagem, prometo perguntar-me (e responder-me, na medida do possível) o que seria da luz sem você, para assustá-la de vez em quando. Sobretudo nas horas difíceis. Mormente em incertas penumbras que, aqui e acolá, desorientam o pólen dos ventos.
 
Em sua honra, prometo, igualmente, eclipsar-me sempre que possível, lançar os meus faróis a quem deles precisar. Uma jura de amigo que lhe faço e um desejo de gente que postulo na densa escuridão do mar comum.
 
Um abraço,
 
Allan
 
15/04/2014
 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Vicissitudes

 
Era favorita – do público, mais que da crítica. Entrou na pista com toda a graciosidade que lhe cabia, envolvida pelas esperanças da torcida e com a adrenalina esmurrando-lhe cada vaso, rareando-lhe, nos brônquios, o ar gelado. Respirava, porém, como se todo o oxigênio fosse seu por direito. A única criatura viva sobre a Terra.
 
Nos primeiros saltos, perfeição. Leveza de quem nascera para desafiar o chão. Certeza de quem empenha a mais fina joia de si por um propósito superior. Após uma sequência difícil, tecnicamente arrojada, desastre: a ponta do pé esquerdo cutuca o desavisado tornozelo direito, conduzindo o corpo à queda.
 
Altivez na recuperação, novos gestos exímios, finalização à altura do espetáculo. Quase riso, quase lágrima, quase dúvida do que fazer. Sabido desconto nos cômputos finais. Crepúsculo de mais um ciclo olímpico.
 
Olhando a frágil menina, perdida em sua atitude admiravelmente triunfante no aguardo da nota (da sentença) decisiva, pensei comigo: tanto esforço, tanta renúncia, uma rotina exaustiva de treinamentos, tudo, de repente, esvaindo-se por um ou dois centímetros inoportunos. Interjeições, faces, mãos erguidas, tudo, num instante, embaralhado nas lágrimas retidas dentro de seus olhos, acusando-a de fracassar ou, pior, estendendo-lhe aquela compaixão protocolar, vácua de sentimento, que cavouca ainda mais o buraco da decepção.
 
Vicissitudes do esporte, atinei, óbvio como um repolho. Vicissitudes da vida, corrigi-me a seguir, esmerando-me para não perder a profundidade do clichê.
 
Filosofias baratas de lado, o caso é que todo atleta, olímpico ou não, está sujeito a não desempenhar, nos poucos minutos de performance, tudo aquilo de que é capaz. Alguém pode até dizer: "ah, mas os campeões consagram-se justamente por consegui-lo sob pressão, por não desvanecer nos momentos de decisão".
 
Verdade. Por outro lado, fico a refletir: e o feito dos que não conseguem? O feito dos que caem com os patins e têm que se levantar, para levar adiante o espetáculo? Haverá neles menos grandeza? O fato de entrar em um estádio lotado e, por cinco, dez minutos, representar em uma coreografia todas as emoções de uma existência, por acaso não conta? O esplendor, a beleza de cada gesto, certo ou errado, preciso ou quebrado, tecnicamente falando, não valem por si só? A simples chance de fazê-lo; de olhar, um dia, para trás, sabendo que a viveu, não possui um valor intrínseco, mais inestimável que o numérico resultado?
 
Há de contar, há de possuir, hão de valer. Tem que ser assim. Tem porque a glória do vencedor, como o opróbrio do perdedor, são efêmeros demais para se impor como critérios. Tem porque, transcorrido o tempo, uma medalha na parede não difere tanto de um prego, uma rachadura, um mosquito, qualquer coisa dessas que a gente mal discerne conforme a vista vai falhando.
 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

está se sentindo...


Estou me sentindo feliz. Lembro uma dor e estou me sentindo triste. Olho lá fora e estou me sentindo esperançoso. Berra o automóvel e estou me sentindo irritado. Pia o passarinho e estou me sentindo em paz. Toca o celular e estou me sentindo ansioso. Cai o ocaso e estou me sentindo nostálgico. Brilha uma ideia e estou me sentindo ousado. Vejo a notícia e estou me sentindo desanimado. Recebo a conta e estou me sentindo indignado. Faço o jantar e estou me sentindo abençoado. Escovo os dentes e estou me sentindo bonito. Abro o livro e estou me sentindo em débito. Fecho o livro e estou me sentindo ancho. Caio no sono e estou me sentindo alma. Voo no sonho e estou me sentindo eu. Desperto e estou me sentindo rotina.
 
Tudo e só um dia mais, tudo comum e espetacular, tudo e ninguém, além de mim, que precise de saber.
 

sábado, 25 de janeiro de 2014

São Paulo

 
Uma cidade não é uma circunscrição territorial, mas uma teia de relações. O vértice do melhor e do pior de cada um de seus habitantes.
 
Assim é São Paulo. Injusta, muitas vezes; injustiçada, outras tantas. Excludente, por uma face; magnética, por outra. Espoliada, no mais apurado espírito democrático, por raposas de todas as felpas - dos velhos e novos tempos, dos olhos ferinos e doces, do tipo malvada e legalzinha. Aérea na frota mirabolante de helicópteros; submersa nos repetidos verões (apesar das obras, todo ano, prestes a começar). Cinza somente nos olhos de quem a chama já se consumiu.
 
A mais brasileira e, ironicamente, a menos brasileira.
 
São Paulo que não cabe nas categorias em que a querem aprisionar. Não cabe porque a sua São Paulo é diferente da São Paulo do seu vizinho, que você cumprimenta ou não nas manhãs ansiosas de São Paulo, de céu tão azul quando chove, que faz crer que as estrelas voltarão a ser vistas na noite iminente de São Paulo.
 
São Paulo, gigante triste, forte como um touro indomável, vulnerável como esse mesmo touro, cego de fúria. Afetada, azafamada, atarantada, frenético ritmo e... Olha, lá fora, a garoa! Gente dura, que não para, só olha pro chão e... Um milhão, espera, dois, não, quatro... Onze!
 
Onze milhões de gentes. Todos carrancudos? Todos ensimesmados? Todos grosseiros? Ou apenas mais fácil explicar assim, enchendo um balde no tanque e julgando-lhe a água como o mar?
 
São Paulo por um fio. Quilômetros de fios. Pedacinho irrisório de chão neste planeta imenso. A calçada do quarteirão em que moro. Os buracos que me traem o caminho. Os pássaros revolucionários.
 
São Paulo e a falta, a sobra, a hora em que uma, à outra, cobra.