domingo, 25 de novembro de 2012

Escorregadias


Sempre escorregadias as vias em que não vias
borbulharem poesias.

Eram como dias que não tivessem noite
capaz de justificá-los.

Frascos cujo elixir vaporasse
antes de exaurir.

Ganas loucas de rir do desejo
de chorar.

Balsa onde o esquecimento
fizesse correr

mais lento
o tempo desnecessário.

Pois sempre escorregadias as vias em que não vias
o óbvio enquanto caías:

eram tuas as poesias,
teu este breviário.

sábado, 10 de novembro de 2012

Perto


Uma hora você chora, outra você ri.
Uma hora iramos lá, outra oramos aqui.
Uma hora quer-se estar, outra só se quer ir.
Uma hora faz-se ator, outra se faz amor.     

E uma hora passa rápido demais para se entender que só vai longe na vida quem aprende, primeiro, a chegar perto.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Fita


Mais perto chega, mais longe fica.
Uma fita que a gente estica e depressa escapa à mão.
Frase que a boca derruba e cai no chão,
tanto faz agora se ode ou palavrão.

Distante, o instante brinca, finge ser eternidade.
De repente é adulto, lança pergunta de vulto:
por que tão cruel quando feita de mel
a saudade?

E outras questões se desprendem dos elos do tempo,
singelos arranjos de banjo a indagar:
e a rotina, quando é que chega
para o baile à fantasia?

E a menina, quando é que volta de lá?
Por que tapa os olhos a neblina que baixa?
Por que, fora da caixa, a música não toca,
o mundo não roda, a bailarina não dança?

Por que, fora da caixa, a bailarina cansa?

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Domingo


Esta chuva diz muito, infiltrações nos documentos de identidade, gotas esguias nas áleas do ventre, entra e sai de perfumes e pensamentos, lentos respingos de um domingo que só o foi porque a semana deve começar, porque Deus quis que, apesar das nuvens, ela começasse feliz.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Planos


Pena que os planos
não sejam plenos
ora demais
ora de menos.

- E que a poesia desmanche tão depressa se feche o livro.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Esquece


Primeiro você conclui que piriguete (ou periguete, pois o debate lexical, aparentemente, ainda não está fechado) virou profissão, da mesma categoria de ex-BBB e ex-peão. Aí abre um site qualquer de notícias e é advertido de que o Neymar (ídolo nacional) "tem que ter tratamento especial". Aí o locutor tem um orgasmo porque, graças ao carinho da torcida, sai mais um gol contra o mistão da China (cuja seleção titular perdeu do Iraque nas Eliminatórias Asiáticas). Aí escuta o coro: "com muito orgulho, com muito amor (...)". Aí ouve a Justiça Eleitoral dizer que agora vale a pena votar, pois com o Ficha Limpa... Aí vem uma pessoa de classe média e diz que todos os males da humanidade são culpa sua porque você é, adivinhem... Da classe média! Aí a mesma pessoa comemora porque tantos milhões de brasileiros foram incluídos, adivinhem... Na classe média! Aí o governo reduz imposto sobre automóvel e cobra sobre feijão, afinal, o que mais precisamos é de novos carros na rua. Aí você folheia a revista e vê o casal ambientalmente correto porque comprou na planta o primeiro apartamento sustentável da cidade. Aí o repórter investigativo dá lição de moral no adúltero. Aí você compra o desodrante X e pega qualquer mulher, depois joga fora, quando acabar de usar. Aí vira no canal tal e desgraça o dia inteiro, pois quando não acontece uma nova, eles repetem a de ontem, para a gente não perder nunca o tônus muscular.
 
Ou seja, cara: esquece! Parte pra outra. Isso aqui já era.
 

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Classe média


Parecer da Secretaria de Assuntos Estratégicos indicou recentemente que, de acordo com os novos critérios de análise adotados, 54% da população brasileira pertence à chamada classe média.
 
Segundo projeções do IBGE, a população do estado de São Paulo atingiu, em 2012, 41,9 milhões de habitantes.
 
Uma conta simples, despretensiosa ao extremo, converge para
 
22.626.000 corpos.
 
22.626.000 cérebros.
 
22.626.000 línguas que dizem o que lhes der na telha, pois, até se prove o contrário, e apesar dos últimos pesares, estamos em uma democracia.
 
22.626.000 insondáveis circuitos neuronais, cada qual exposto a uma combinação de impulsos e estímulos necessariamente única, exclusiva, inimitável.
 
Isto posto, que me desculpem: nada pode haver de mais conservador, de mais insidioso, de mais retrógrado e pusilânime, que se pretender o emparedamento de universo assim plural. Nada pode haver de mais emblemático que tamanha aberração emanar das salas de aula da maior universidade da América Latina, onde número preocupante de estudantes repete em coro, como bons soldados (ou papagaios): "espírito crítico! Espírito crítico! Espírito crítico!".
 
Passa da hora de nos perguntarmos: que raios de espírito crítico é este, que se presta às versões mais mesquinhas de sectarismo? Que raios de espírito crítico é este, que só enxerga e denuncia o que lhe convém? Que raios de espírito crítico é este, que se vale dos mesmos nefandos rótulos contra os quais deveria se insurgir? Que raios de espírito crítico é este, que se deixa manobrar com a facilidade de um carrinho de bate-bate?
 
Como passa da hora de nos perguntarmos: que raios de progressismo é este, que rotula e desqualifica seus adversários com a sanha doentia dos melhores totalitarismos? Que raios de progressistas são estes, que confundem ciência com ideologia, cultura com partido, filosofia com doutrinação? Que raios de progressistas são estes, que deram de sair por aí com o martelo da moral em riste, distribuindo veredictos míopes e estigmatizando quem não os acata? Que raios de progressistas são estes, a tal ponto preconceituosos, que se permitem a audácia de tomar 22,6 milhões de almas e jogá-las no esgoto, como criaturas abjetas, inferiores?
 
Fora das categorias puramente formais da investigação demográfica, classe média paulista é uma ficção, e de péssima qualidade. A realidade concreta do estado de São Paulo, talvez intangível para esses etiquetadores compulsivos (e, lógico, representantes máximos do espírito crítico nacional), é a de homens e mulheres que trabalham, pagam impostos, suam, sofrem, surfam e se ferram no asfalto comum. Seres humanos das mais variadas compleições físicas e origens geográficas, que forjam seus valores não no delírio de uma categoria artificialmente imposta por pseudorrevolucionários, mas na luta diária pela sobrevivência. Gente tão sortida, de tão escassos recursos e em tão diferentes posições, que, não raro, vê-se obrigada a competir entre si por essa sobrevivência. Pessoas que talvez não atinjam a sofisticação intelectual dos progressistas da USP (que não leem a revista Veja, porém se esbaldam em publicações de verniz mais fresco, lotadas de publicidade oficial), mas, ainda assim, pessoas, de carne e osso, com os mesmos direitos e deveres das iluminadas mentes que as culpam pelo atraso do país. Comprimir, ou melhor, pretender comprimir tamanha variedade numa expressão deliberadamente discriminatória não constitui apenas mero equívoco de discernimento. Trata-se de autoritarismo descarado. Obscurantismo em estado puro. Ameaça iminente à liberdade. Policiamento ostensivo do direito à diversidade. Além, claro, de afronta sem par à inteligência.
 
É muito fácil destrinchar tanto os vícios como os interesses por trás desta necedade discursiva. Quem olha para a sociedade brasileira com um mínimo de imparcialidade, despido das modalidades de acirramento convenientemente em voga, mais que depressa percebe a que (ou a quem) servem determinados movimentos que ora ela assume. Deixe-se o olhar, todavia, para olhos mais treinados, como os da História, e ocasiões mais propícias, como o futuro. Lá, espera-se, todo o estrago feito por expedientes mal-intencionados como esse venha à tona. Oxalá haja meios de repará-lo.
 
O que alivia é que tudo tem a sua razão de ser. Não bastando o insulto, o ranço, o rótulo, o viés, para enfatizar seu ponto de vista vanguardeiro e modernoso sobre o referido estrato social paulista, cunharam a expressão "classe mérdia". Decididamente, não surpreende. Conservador ou progressista, alienado ou crítico, uma verdade fisiológica une todos os brasileiros, do Oiapoque ao... Chuí, digamos assim: a fonte dos excrementos.
 
"Mérdia" só poderia mesmo sair de um...
 

sábado, 1 de setembro de 2012

Trem


Em algum lugar do mundo, ainda que lá no fundo, mesmo que por um segundo, eu sei que você sorri. E chora enquanto sorri. E a lágrima, que desce salgada dos olhos, ao percorrer a pele do seu rosto, ao ir se dando conta da beleza do caminho, morre doce na boca, quase contente de fenecer.
 
Pois o que as pessoas não saem contando por aí é que, às vezes, o mar quem faz os rios. O sol quem faz os frios. O medo quem traz os brios. E o que as pessoas não saem contando por aí é que, detrás do véu, pranto e mel patinam juntos no lago congelado da memória, confundem-se numa só infusão, esperando de mãos dadas voltar o verão, estação do seu bem.
 
Este trem, porém, o verão não toma, o verão não volta, o verão apenas vem.
 
E é preciso se conformar.
 

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Vôlei

 
Não à toa joga vôlei.
 
Quando chega, manchetes garrafais nas linhas dos meus jornais, que dançam entre as notícias sérias que aborrece ler.
 
Quando entra na quadra, impecável no uniforme de treino, saca um punhal e crava-o no peito do planeta. Que, assim, passa a girar no eixo do queixo da menina, no ritmo de sua respiração, na órbita valente de sua ilusão.
 
Quando passa por mim e pisca depois de um ponto disputado, o apito do juiz emudece. A torcida inteira se cala. Apenas o orvalhar das rosas dos seus lábios, a orquestra de cordas dos seus gritos de comemoração, o brilho delicado de quem perde e vence com o mesmo doce encanto no olhar.   
 
Quando vai embora e acena detrás do alambrado, dizendo tchau - um tchau alegre, sublime, sorridente como o sol da manhã - corta o meu coração.
 
Que fica triste, caído, anoitecido. Mas só até ela voltar no dia seguinte e levantar a bola do jeito que ele gosta, driblando os possíveis bloqueios, agigantando-se sobre eles, fazendo-os plataformas para saltos cada vez mais altos.       

Tão altos, que reclamam, chiam, falam que assim não vale, vocês parece que flutuam. E não cansam de dizer que juntos somos capazes de ir beber a água do céu.

*
 
A outra, por seu lado, não é do vôlei. 
 
Nunca pratiquei esporte algum junto com ela. O que não deixa de ser interessante, pois é lembrar seu nome, pensar nos seus olhos de mousse me desafiando, que o jogo começa. Os músculos tremelicam, o coração desanda feito locomotiva desgovernada, a respiração some e vai a mil em menos de um segundo. Corro contra o relógio, salto barreiras de sombra, arremesso discos de vinil na plateia, tomo emprestado arco e flechas de Cupido, combino uma brisa com o vento só para ela ficar feliz e dizer que o tempo está gostoso. Dou tudo que tenho, empenho casa, carro, juras, faço quanto posso e quanto não posso, crio espaços, invento direções, figuro sentidos, mordo o cotovelo com o dente do siso... Nada. 
 
Mais uma partida perdida nas atas sem fim dos registros de mim.      

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Esquisito


Penso se fiz bem em ignorar a multidão de coisas a redor. Este meu desdém para tudo quanto se pinta de sério na vida de uma pessoa. O rol de leituras obrigatórias, rituais de passagem, penhoras sociais, experiências transformadoras, sem os quais, dizem, devemos nos suicidar. O tem de passar por isso porque Fulano disse, tem que fazer aquilo porque não se é jovem para sempre, precisa saber mais que os outros e, principalmente, antes que os outros, não pode desistir nunca, nunca, nunca.

Alguém disse uma vez, ou deve ter dito, que, se conselho fosse bom, ninguém dava de graça. Raciocínio, convenhamos, muito do lógico em um país onde tudo se cobra, e bastante caro. Mas não é este o ponto. A questão vai mais no íntimo: tenho mesmo? Preciso mesmo? Ora, não bastam já as leis ordinárias, a interminável Constituição, o costume das gentes, os mandamentos da fé, a irrequieta voz da consciência, placa daqui, placa dali, seguranças de shopping, guardas de trânsito, anúncios de videntes, propaganda da Unilever, propaganda do governo?

Decolo do plano retórico, aterrisso, lanço no ar as minhas dúvidas... Chamam-me alienado. Com razão, bastante razão, é claro, quem ignora, quem se alheia, quem se insula, não merece alcunha diferente. Alienado. Acha que a vida é brincadeira, parceiro? Acha que pode ficar em cima do muro o tempo todo, com esse sorrisinho presunçoso? Acha que meia dúzia de palavras medíocres resolvem o problema de alguém? Acha que é diferente para você?

Aí é que está: eu acho. Diferente para mim e para cada um. Obrigatório? Para você! Necessário? Para você! Imprescindível? Para você! Para o resto (e somos muitos), a vida é uma brincadeira, todos cabem sobre o muro (que, assim, não separa ninguém), palavras insurgem quartéis e insuflam corações. E, quando não é dia, a vida é uma luta ingrata, o muro segrega povos, as palavras se despejam no esgoto, o sorrisinho presunçoso vira soluço dolorido na garganta. Não porque você diz ou porque tem que ser. Porque é.

Fazem grandes discursos por aí do risco e do mal da alienação. Mas não é com os alienados que se deviam preocupar, não. O maior perigo destes dias são os conscientes. Os que se julgam na vanguarda de tudo quanto é causa e saem se vangloriando dessa liderança, como uma elite intelectual chantagista que, para a saúde dos nervos e o bem do tratamento, não pode ser contrariada. Os que totalitarizam a vida cotidiana com essas máximas pomposas e sem nenhum significado. Os que leem o jornal de ontem e acham que sabem a história. Os que almejam ser livres para amanhã prender os inimigos. Os que fecham a frase e, no seu autoritarismo de baixa caloria, emendam: ponto, fato, assunto superado, página virada, imprensa golpista.

É esquisito ver a democracia nas mãos desses homens, concentrada em supositórios que nos enfiam, periodicamente, para continuarmos acreditando que eles trabalham por ela. É esquisito que nos cobrem para que cobremos, de quem não cobra, que passe a cobrar os outros, e nessa espiral desenfreada de cobrança, ver desenhar-se a peçonha de uma cobra horripilante.

É esquisito que um peixe graúdo morra afogado em alto-mar, mas se a perícia diz... Não será este o infeliz a desmenti-la.

*

Mais uma noite que passo
encarcerado no espaço
onde o sonho me demora
e você já foi embora

Por que não fica uma vez?
Por que tamanha mudez?
Por que não me contemplar
que o seja só pelo olhar?

Responda-me, por favor!
Responda-me, doce flor,
que sentido no luar
se a noite não terminar?

Que sentido no luar senão nos iluminar?

(Para uma flor doce, azeda, grave, leda, linda, que um dia viveu de fotossíntese na luz de um celular e hoje, olha que chique, tem o luar todo para ela).
    

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Floresta


Tem dias que sou capaz de livros inteiros, de cruzar galáxias em veleiros, só com o que vejo e sinto. Brilho tão forte, uma tal jornada de sorte, que do céu chovem rosas e rubis, o povo toma as ruas e canta feliz, cada um casa como quer e com quem quer, homem com homem, mulher com mulher, terráqueos com marcianos, deuses com humanos.

Mas tem também dias que a boca seca e a palavra empaca. Vaca sem leite. Verso sem prosa.
O esforço, então, é gigante.
Como todo gigante, um tanto extravagante - e desastrado. 

Fico vermelho, engasgo, gaguejo. Pareço criança querendo mentir.
Rezo para alguém vir e me pegar no colo, inventar uma descupa, tirar-me dessa fria o mais rápido possível.

Poucos se habilitam. Eu sei como é. Cada um tem já muitos problemas para enfrentar. Não há lugar para mais um. Além de que é deprimente encarar o fraco, cuidar do fraco, juntar seus cacos um a um, sabendo ele irá quebrar depressa a Terra gire. Risco até pire quem se tentar de tentar semelhante insensatez.

Vez por outra, no entanto, que um canto se espraia do mar sepulcro de silêncio. Seu olhar refulge e sei, não sei como, que ele veio me salvar. Não à toa, não por ser a alma boa de Setsuan, não porque o tempo escoa em dutos enquanto o corpo espreme-se em canudos. 

Vem porque sabe que tem dias de Parnaso e dias de esculhambação.
Vem porque sabe dos dias de ser mar e os dias de sertão.
Vem porque sabe dos dias de harpa e os dias de atear fogo.
Vem porque sabe a medida do esforço.
Vem porque sabe que não forço. 

Vem porque, ali à frente, a floresta tem caminhos demais para os sabermos sozinhos, quatro faróis iluminam mais que dois.

A floresta tem segredos demais para os sorvermos sozinhos, para quem contar depois?

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Por enquanto


Mais longe que o sol
e sua luz me atinge
decifrando a esfinge
que ora me devora

Sei que esta hora, em algum lugar, ela está cantando, porque canta como um rio corre ou como o vento sopra. Talvez não se lembre, talvez não me conheça, talvez se esqueça rápido dos nomes e das faces. Talvez não exista uma tarde como aquela, de lábios vermelhos, de laços dourados, de dentes que mordem veias de licor e chocolate. Talvez as pedras não falem, o canoeiro não cruze o quadro remando para o norte, os amigos em comum sejam carteiros ou garis. Talvez proibido ser assim feliz.

Que não passe de um delírio.
Que seja, aliás, lírio, não rosa.
Que seja um bordel ou monastério.
Sério: não muda.

Pois sei que esta hora, em algum lugar, ela está cantando, e eu também estou. E isto basta por enquanto.

Isto basta, por encanto.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Manancial


Quando a represália se espalha
nas áleas da convivência

Quando o silêncio assusta
mais que a sentença injusta

Quando se verte ironia
na ordem do dia

É uma pena.

Uma cena que não deveria ser escrita por ninguém.

Fomos, um dia, manancial farto de amor. Quase de tudo dava nossa fonte. Quase de tudo. E o pouco que não dava, não fazia falta, pois éramos felizes com o que tínhamos. Éramos felizes com o que éramos, com o que poderíamos ser.

A água, porém, deu de jorrar turva. Virou lodo. Barro. Escarro, escárnio, esgoto de bocas que perderam o dom do gosto. Aposto sem frase. Posto sem base. Fase sem fim.

Em mim, sensação de um chão que se condensa enquanto corro.
De mim, morro que virou colina, chama que virou melancólica gota
de parafina.

Gota, gota, gota.

Último fio pulsa, pende, se desprende.

Gota.

Orgulhoso manancial que fomos. Bons tempos que ficaram para trás da cortina de ferro. Berro e ninguém ouve. Talvez não seja para ouvir, nem para gritar. Falta-me ar nas cordas. Nas cordas... Por que tão cedo foste expirar, manancial? Por que não jorraste um pouco mais? Ainda tenho sede, tanta que não imaginas.

Orgulhoso manancial.
Sarcasticamente, fonte seca.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Casamento


Se dissesse que foi como em um filme, talvez me acusassem de abuso dos clichês. Como não ligo nem um pouco para as críticas, insistirei nesta linha: foi, sim, como em um filme. Com todos os componentes de uma fita que fica para a história, que os avós vêem, depois os pais, os filhos, e a emoção parece genética, tal sua  força e familiaridade.

No traje, nas músicas, na decoração, nas palavras, no show, nos máximos detalhes, o esmero do casal. A denúncia do seu respeito e amor pelos convidados. Na cerimônia, o patrimônio mais precioso que eles poderiam adquirir: aplausos, sorrisos, lágrimas, beijos e abraços dos seus entes mais queridos. 

Saber que sou um deles, que estive próximo em alguns momentos importantes da sua trajetória, que sou bem-vindo em sua casa e em suas orações, que pude compartilhar dos aplausos, sorrisos, lágrimas, beijos e abraços da apoteose da festa que os uniu, é um presente - dádiva que se renova e fortalece a cada encontro. Presente porque, de maneira muito especial e particular, eles me devolvem, na íntegra, gratuitamente, a esperança que esta vida maluca me rouba em outros lugares, outros contextos. E, com seu afeto sincero, imenso, transbordante, seus narizes vermelhos e sapatilhas douradas, não somente não deixam o show parar, como diluem as fronteiras entre palco e platéia, olho e tela, ouro e pedra.

O casamento pode ter os mais diversos significados, seja para a religião, para a lei, para a sociedade, para o imaginário, para os devaneios românticos e as aterrissagens realistas. Vem, de costume, cercado de expectativas, rótulos, medos, coragens, sinas, surpresas. Já constituiu tema para todas as formas de arte e não-arte imagináveis.

Depois deste feriado inesquecível, porém, nada disso tem importância. Casamento, para mim, resume-se, neste instante, a amor, felicidade, um campo de flores que se estende além do alcance da vista e o som da música, prenunciando horas ainda mais amáveis, floridas e felizes. Muito obrigado por tornarem verdadeiro e verossímill este sonho para mim. E continuem sendo estas pessoas que, juntas, valorizam, cuidam e completam uma à outra, o que é tão bonito e inspirador de se ver.

Com carinho,

Allan

terça-feira, 10 de abril de 2012

Faltas


Não sei se é porque estamos em abril, mês que sempre me reserva das suas (em 2008, lá pelas cercanias da Páscoa, dei até para começar um diário, que logo abortei e ontem andei relendo, com perplexidade e nostalgia). Em todo caso, já há alguns dias que venho pensando em um tema cuja natureza se revela, a meu ver, delicadíssima: a falta.

Reflitamos: quantas faltas preenchem a nossa vida? Como passar por esta, aliás, sem aquelas? Uma vez, fazendo uma experiência cinematográfica junto com meu irmão, perguntamos a algumas pessoas da família sobre o assunto. A questão era a mais aberta possível. "O que faltou?". Não vou lembrar exatamente o que cada um declarou, mas a comunidade do sentimento é marcante. Sem exceção, as respostas fluem de um aspecto inicial mais palpável, como entes queridos mortos, aromas de infância, vigor físico, a um espectro de ausências vagas, ligadas majoritariamente à passagem do tempo. Neste último caso, aliás, não somente a substância da declaração se torna vaga, como as próprias palavras tendem a desvanecer, gerando um inventário de sentimentos belo e profundo, mas também incoerente, de difícil tangência.

Justamente em virtude da complexidade da matéria, não me sentirei decepcionado, nem mais ilhado do que já estou, no caso de engendrar antes incompreensão que entendimento ao falar de minhas faltas. O que posso adiantar é que elas oscilam desde lacunas milimétricas, como pequenos adiamentos, atrasos, bibliografias complementares, explicações de professores, compromissos sociais, a grandes vazios, incidentes sobre virtualmente a totalidade das melodias do concerto vital. Vazios presentes, pretéritos e, alguns deles, vazios assombrados antes mesmo de acontecer, visto que são, essencialmente, vazios de futuro, pressentidos com temor e estranha resignação desde esta aurora.

Esmiucemos alguns deles. Se tivesse uma lente agora diante de mim, inquirindo-me o que faltou, começaria pelo menos relevante. Meus livros de italiano, por exemplo. Toda vez que os olho, que abro suas páginas incompletas, que contemplo as linhas dos diálogos em branco, tenho uma pequena tristeza. Não por performance ou por notas, que ao fim do semestre acabam até bem altas, mas pela atitude. Pelo fantasma do desleixo, os motivos infantis com que às vezes me surpreendo justificando o protelamento de alguma dificuldade. Pela ciência de que um pouquinho mais de vontade e os balões dos personagens estariam repletos, seus semblantes, felizes, os ditados, transcritos e corrigidos, os exercícios, resolvidos. O mesmo para outros tantos débitos mais significativos, outros tantos diálogos que deixei ou deixo em branco, em São Paulo, em Campinas, em São Sebastião, na casa dos meus primos ou da minha avó, em todos os lugares que freqüento, com diversas pessoas que conheço.

Aí está outra coisa que faltou: o diálogo. Relendo os diários que mencionei, percebo quanta coisa eu tinha a dizer e calei. Quanto, aliás, ainda tenho a dizer sobre aqueles anos, ainda que por linhas diferentes. Muito do seu conteúdo, hoje, não faz mais a menor diferença. Até me embaraça, para ser sincero, por ser uma insensatez só. Mesmo assim, foi um período que determinou e consolidou pontos importantes do que sou e daquilo em que acredito. Quando verdadeiramente me fiz adulto, aprendendo sutilezas da personalidade humana com que jamais atinara. Quando convivi com pessoas muito diferentes entre si, no Cidadão Dançante, na Unicamp, nos pequenos espaços que sobravam fora dessas duas realidades - à época repelentes entre si, forçando-me a andar numa corda bamba diária para manter um pé em cada uma delas.

O diálogo que faltou e segue faltando, com meu avô, com minha avó, com outros parentes que também não estão mais entre nós. Em muitas ocasiões, imagino - e lamento - o quanto deixei de ouvir e conhecer de todos eles, pensando que amanhã diriam novamente a mesma coisa, repetiriam a mesma história. Com os próprios membros da família que estão aí, tocando a sua vida, ora numa boa, ora enredados em intrigas que, como todos nós, em breve voltarão ao pó. É fácil demais, quase irresistível, colocar a culpa nas poucas horas do dia, na opressão da metrópole, no caos urbano, no volume de informações, na batida frenética do capitalismo. Quase todos decoramos e rezamos essa missa. Às vezes é verdade, às vezes não.

Uma falta da qual me ressinto é de ousadia. Não, claro, no sentido que virou banal de ousadia, com saltos de bungee-jump, ondas havaianas, inconseqüentes casos extraconjugais em nome de uma concepção esquisita de liberdade. Não que esteja errado apelar a qualquer dessas alternativas, muito pelo contrário. Cada um encontra o prazer onde bem lhe toca e isso é um problema de ordem sagrada e exclusiva da individualidade. Mas a ousadia a que me refiro é na acepção de enfrentar o ego, de engolir o orgulho, de se admitir feio, estúpido, antiquado, escandaloso, imoral, esnobe, insuportável, desnecessário aos olhos e ao coração de muita gente. Ousadia como abandono sumário da tentativa de construir pontes com todos os pontos remotos do planeta, até com o que está submerso. Ousadia como a assunção plena, sem traumas, de que não é ruim ser apenas mais um, destacado em algumas áreas, patético em outras. Ousadia de parar com a obsessão de ser aceito e entender que já o sou, na medida exata que todos são, ou seja, parcialmente, como toda obra humana. Ousadia lúdica de mandar uma mensagem de texto às quatro da manhã para avisar que a Gretchen está sendo entrevistada no canal 22 da TV a cabo, ou para combinar de ir no cinema amanhã.

Falando nisso, vamos?

domingo, 1 de abril de 2012

Primeiro de abril


"Puseram no lugar
os pés do Curupira,
verdade?
Mentira..."

É primeiro de abril.

Dia de acreditar que o barco que regressa é o mesmo que partiu. De crer que as palavras dizem o que o dicionário diz que elas deviam dizer. De sonhar com geometrias que não cabem no papel, com estrelas que pingam do céu e embriagam os transeuntes. De imaginar a dança no papel das guerras, professores no lugar de carcereiros, o apito do árbitro no estalo dos fuzis. De direitos civis finalmente consumados à exaustão, sem prejuízo de nexo, cancro, dor ou cruz. De tuiuiús voando despreocupados na imensidão do seu Pantanal, livres de algemas de ferro e de controle social. De almejar, sem medo do herético ou o ridículo, o que bem nos aprouver. De ser branco, preto, alto, baixo, bárbaro, douto, homem, mulher, Margarida ou o que der na telha. De o que o vidro espelha ser tão puro e delicado quanto a imagem cristalina que o coração divisa. De a brisa confusa da paz soprar com ganas de furacão, até longe, inofensivo, o último adeus da solidão...

Mourão, deviam baixar uma medida provisória proibindo o primeiro de abril.
Já proíbem tanta coisa, que uma a mais, uma a menos, o povo nem se dava conta.
E em vez de cantarolar como a moda ali de cima, sem perda de efeito ruminariam:

"Deixaram sem mudar
os pés do Curupira,
verdade?
Mentira..."

Ai, que inveja absurda ostento dessa gente que delira!

sábado, 24 de março de 2012

100 postagens, 210 teses, uma vida...


Creio que data melhor não poderia haver para uma centésima postagem. Afinal, hoje se celebra o primeiro aniversário de lançamento do livro "A paisagem vem de dentro", cuja essência advém, em grande medida, desta página. Como a proposta do blog nunca foi biográfica, no sentido de compartilhar, explicitamente, acontecimentos e emoções que permeiam a minha vida (para este fim, os reality-shows, que o fazem com muito mais competência e dramaticidade), nesta postagem comemorativa, por razões diversas, inverterei a tendência. Começarei pelo caminho que levou à publicação do livro, o porquê do título, os percalços e angústias que envolveram todo o projeto, da concepção às vendas. Tomando o gancho dado pelo assunto, comentarei sobre outros percalços e angústias próprios da existência, ou da minha experiência existencial, seus contrapontos, a ansiedade e os ansiolíticos que o planeta prescreve... Enfim, um rocambole do qual, espero, quanto menos se entenda, mais se aproveite.

Inaugurei o blog em 2008, algumas semanas depois de uma importante decisão que tive de tomar: em setembro daquele ano, abandonei a faculdade de medicina. As causas da ruptura (que só foi ruptura em aparência, uma vez que se tratou de ato exaustivamente refletido) atendem por incontáveis nomes. Alguns deles, claramente objetivos, como a perda de interesse pela matéria, a incompatibilidade entre a dedicação exigida e aquela que eu estava disposto a oferecer, a irresponsabilidade que seria lidar com a saúde de uma pessoa sem estar comprometido integralmente com a profissão; outros, pertencentes à zona cinza da subjetividade, como a falência de expectativas, a dificuldade em assumir a identidade esperada de estudante de medicina e futuro médico, o lento desvanecer de ligações com amigos e colegas. Pela extensão da lista de circunstâncias, até hoje é complexo responder, a quem me pergunta com incredulidade, por que eu "larguei" a medicina. Logo a medicina, com que tanta gente sonha, tão difícil de entrar, tão prestigiada, tão sei lá mais o quê. Complexo pelo fato de que a lista só aumenta quando me detenho nela. Complexo pois, apesar do estímulo que me dão ao ouvir minhas explicações, ressaltando a coragem da deliberação, eu, no fundo, digo a mim mesmo que não foi coragem, foi medo. Complexo pois, por outro lado, entendo que não devia dar explicações de nada, a vida é minha, faço dela o que bem queira. Complexo pois quatro anos passaram e ainda desvendo resquícios de decepção em determinados parentes, que me viam em posição de destaque na linha de sucessão para o trono de outros parentes. Complexo, principalmente, porque não deixo de pensar que, se pelo menos uma das razões discriminadas tivesse tomado outra direção, era bem possível que ainda estivesse lá, singrando sendas diametralmente opostas às que percorro hoje. Esta fragilidade vital, estas vírgulas que separam as orações, muitas vezes assustam, ao colocar em xeque a titularidade do que se conveio chamar de livre arbítrio.

Voltando ao que dizia. Inaugurei o blog em um momento difícil, com o intuito primeiro de suprir parte do vazio deixado pela repentina mudança de rumos. A decisão, como enfatizei, foi bastante elucubrada, não resultando de súbito arroubo. Hoje, prestes a me formar em Relações Internacionais, tenho consciência de que ela foi muito bem-sucedida, mais até do que chegara a imaginar. Porém, se a escolha por uma nova faculdade era algo do qual tinha convicção, as repercussões psicológicas da modificação não me foram avisadas com antecedência. De modo que, após alguns dias de tranqüilidade e, mesmo, alívio, seguiram-se semanas de medo, desânimo, febre, indiferença. Estados de alma que jamais experimentara, sanados apenas no ano seguinte, quando o início das aulas na USP estabeleceu um novo sentido. Por meios que igualmente não poderia imaginar, a escrita e esta página, em particular, propiciaram-me muito. Não cabe, aqui, estender-me no objeto do último verbo, porque esse 'muito' se bifurca e as bifurcações se multiplicam. O que sei é que, lendo as postagens, comentando-as, também o que eu escrevia em outras redes e outros papéis, algumas pessoas fizeram-me crer que era plausível o projeto que há alguns meses acalentava: lançar um livro.

O título do blog (e, mais tarde, do livro) surgiu de uma fotografia tirada em São Sebastião. Contemplando o mar, o reflexo esverdeado da serra, as curvas e reentrâncias tão típicas do litoral norte de São Paulo, atinei um dia com este pensamento. Por que a paisagem é tão bela? A que histórias ela remete assim que os olhos transformam-na em imagem? Disto derivei que a beleza não era um bem absoluto, fechado em si. Aquele conjunto de mar, montanhas, ilhas, vento, cores, só se tornava bonito, só suscitava deleite e bem-estar, por ativar outro conjunto de paisagens, tempos e memórias dentro de cada um de nós. O que leva a que encontremos, em paulistanas asperezas de concreto, traços de maravilha, ao passo que horror e repugnância em quadros teoricamente mais agradáveis à vista. Pode-se dizer que é uma visão relativista, simplista de minha parte, mas eu não acho. A beleza é uma experiência singular, insondavelmente singular, um dos poucos bastiões em que as convenções entram, mas não conseguem impor verdadeiramente a sua égide.

Evidentemente, há outros aspectos e significados, para o título e, notadamente, para os textos que compõem o livro. Por isso evito ao máximo dar qualquer parecer sobre seu conteúdo. Perguntam-me, vez ou outra, o que é verdade e o que não é, quem é Fulana, quem não é, o que eu quis dizer com tal frase ou tal palavra. Não respondo porque, na minha opinião, a partir do momento em que o texto foi finalizado e o livro, publicado, já não é mais uma questão do meu domínio. Qualquer palpite adicional seria interferir negativamente nas múltiplas possibilidades que os poemas e as histórias adquirem quando lidas por pessoas diferentes. O que é legitimamente importante está contido no momento da leitura, no que se pensa e sente naquele instante, nas relações que as palavras vão tecendo com a experiência individual ou, mesmo, social - tanto para quem está com o livro nas mãos, como para quem o escreveu.

O que sei é que, depois de um ano, mais ou menos, de blog, colhendo as sugestões e impressões que ia recebendo, julguei que os textos que tinha em mãos eram suficientes para um livro. Revisei-os, mais tarde tornei a revisá-los, então escrevia outros, deixava de gostar dos iniciais, achava-os imaturos, ridículos, sem a menor coerência. Nessa confusão passei meses, acossado por dúvidas consistentes sobre a qualidade e pertinência do que eu estava fazendo. Não em poucos ensejos pensei em deixar para lá, avaliando tratar-se o projeto de um devaneio, uma forçada de barra.

Devo dizer que foi muito difícil passar da etapa de preparação para a de materialização. A consciência da exposição, em primeiro lugar, assusta bastante. Mais até, a consciência de que não se conseguirá atingir plenamente a expectativa também torna a jornada árdua. Até o último dia antes da liberação para a impressão, martelava na cabeça a eventual falta de algum tema. Talvez seja difícil de explicar, mas o que me incomodava era o risco de deixar passar alguma coisa que eu quisesse expressar, e que somente faria sentido se expresso ali, naquela obra, naquele contexto e tempo específicos. Algo que morreria ou se transmutaria em tal grau que, mais tarde, não mais careceria de reverberação. No cômputo geral, creio que as medidas necessárias para evitar tal possibilidade foram tomadas, pelo menos as que estavam a meu alcance. Por um capricho íntimo, orgulho-me disso. Como estabeleci no prólogo de "A paisagem vem de dentro", sempre escapará um detalhe que fará o livro incompleto, seja um erro gramatical ou uma distorção feroz da lembrança. Em todo caso, o fato de saber que o melhor que pude está registrado naquelas páginas, serve-me como a mais preciosa das recompensas.

Da fase final, que engloba o lançamento em si e as divulgações, enfatizo que a noite de 24 de março de 2011 foi extraordinária. Praticamente todos os amigos estiveram presentes, alguns, inclusive, surpreendendo-me, tanto tempo não os via. Ótimo clima, nada maçante ou cansativo, como ocorre, aqui e ali, em lançamentos de livros. Uma leitura artística encabeçada pelo grande amigo Sérgio Ignácio e a consagrada atriz Tuna Dwek, duas pessoas a quem sempre deverei gratidão. Ponto negativo dessa etapa, o momento difícil que meu avô atravessava, internado no hospital, com a saúde francamente debilitada, além de todos os desdobramentos que a situação geraria no seio familiar.

Família que, a partir de agora, toma o centro das atenções nesta postagem.

Confesso, sem medo de errar, que minha noção de família, como o mel e o açúcar, era mais doce na infância do que é hoje. Libertar-me desta concepção ingênua, que parecia indelével, tem sido muito difícil, sobretudo após a morte do meu avô. Ilustrando a condição, é mais ou menos como se eu vivesse na Lua, flutuando, de repente acordasse na Terra, com os pés grudados no chão, cercado de dedos em riste, martelos de juízes e gigantescas pílulas de Lorax. Pois, de um mundo de relativa compreensão e estabilidade, de aparente respeito pela autodeterminação dos povos, passei para outro cujo ritmo é ditado pelas cobranças, as críticas, a parcialidade, a arrogância, o ranço, a ironia. Privo-me de comentários sobre o absurdo que vejo em relações que não me dizem direto respeito. Na parte que me cabe, todavia, mais que indignação ou revolta, mais até que tristeza, a palavra que resume o sentimento é uma só: 'decepção'. Que profunda decepção deparar com o que tenho testemunhado nos últimos anos. Por motivos que desconheço (e desconheço não por omissão ou ignorância, senão pela solene recusa, da parte dos envolvidos, em pelo menos tentar explicá-los), membros de minha família vêm fazendo, de suas vidas, uma cruzada raivosa e ininterrupta pela defesa de suas posições. Nada mais lhes parece importar que não ver prevalecerem as suas opiniões. Com intransigência, agressividade e criticismo desmedidos, torcem-se como répteis para não voltar atrás. Pisoteiam sem remorso sobre as emoções dos demais. Fazem uso das mais torturantes técnicas de produção de culpa para que triunfem os seus interesses. Sufocam a mais singela manifestação de espontaneidade. Tudo o que me desperta sorriso é tachado de medíocre, ridículo, banal, ultrapassado. E quando digo tudo, não é força de expressão. É tudo mesmo. Uma manchinha de sol não resiste a suas nuvens obscuras.

Em outros páramos, com alguma propriedade dir-se-ia que é do tempo, da idade. Aqui, não é o caso, pelo menos não inteiramente. O que vem ocorrendo resulta da assunção consciente de uma atitude egoísta e belicosa, servindo a fins que, reitero, não posso compreender. Tanto pior, aliás, não é a incompreensão, mas a convivência com a contradição exposta. Afinal, um comportamento que hoje se demonstra rude, detestável, intolerante, sob qualquer lente, injustificável, não anula o amor que sinto por essas pessoas, tampouco o amor que elas devem sentir por mim. Menos ainda apaga vinte anos de laços profundos, laços cuja substância, quero crer, consiste em mais que mera ilusão. Por outro lado, manter-me aferrado ao papel que me designaram, numa eternidade morta e silente, já há algum tempo deixou de ser alternativa. Lamento que eu não tenha saído à semelhança dos modelos que eles idealizavam. Lamento sucumbir à pressão deste rótulo que me grudaram sem permissão, rótulo que afirma que tudo posso, desde que eu queira. Infelizmente, não é bem assim que a realidade funciona. Tenho fraquezas, muitas fraquezas. Mais: tenho vontades. Da mesma forma que não quis ser médico, posso também não querer ser o garoto-prodígio, o que descobre o planeta em intercâmbio, o que fala com todo mundo e é superlegal. Para o bem e para o mal, não sou a versão acabada desse modelo. Tusso, espirro, tropeço, tremo de medo. Esqueço várias coisas que aprendo. Penso com a minha cabeça, não com a dos outros. Se essa discrepância tem, verdadeiramente, mais importância que outros valores e virtudes (os quais, aliás, minha própria família faz questão de ligar publicamente a seu sobrenome, com um ufanismo à Galvão Bueno), é de se lamuriar. O fio da história ter-se-á perdido, sem visível recuperação.

Importante salientar que, se teimo em discorrer, até com copiosa freqüência, sobre o tema familiar, é porque ainda o valorizo. Da forma como as coisas caminham, o horizonte é alarmante. Estou cansado de ver tudo virar objeto de disputa, de luta mesquinha por nacos de autocompensação. Farto de que a palavra seja aprisionada, torturada, envilecida, tomada invariavelmente como ataque ou grito de guerra. Fatigado da imposição sumária de fórmulas prontas, com a onisciência presunçosa de quem se julga perfeito e está longe de sê-lo, embora pudesse estar próximo se menos tempo dispendesse em defender sua pretensa infalibilidade. Atraso-me em dizer, mas digo: não sei viver nestes termos. Não quero nem aceito este estado de coisas. O destino, sob as condições que ora imperam, é o afastamento crescente. Seria uma pena, decerto, mas não pena maior que a que venho cumprindo nos últimos anos, encarcerado nas regras volúveis de um jogo sem vencedores.

Dita a safra falida, que se destaque a colheita frondosa. Nem somente de sombras se alimenta o aspecto familiar. Há o lado bom, o lado brilhante. Meu primo João Pedro cresce a olhos vistos e continua o menino bonzinho que sempre foi. A Luna veio ao mundo em outubro e só traz alegria em cada nova expressão que arrisca, cada nova descoberta que faz. O mesmo vale às outras crianças, Mariana, Lucas, Luana. Novas gerações que terão, no futuro, os mesmos debates, as mesmas inquietações sobre seus pais, tios, primos, avós.

Encerrado o capítulo, volto ao livro como referência temporal para dar prosseguimento ao que gostaria de dizer. Um ano após a publicação de "A paisagem vem de dentro", considero que meus objetivos em relação à obra foram plenamente alcançados. Mais que os depoimentos que recebi de quem leu, mais que os elogios e críticas com que tive de lidar, a noite de 24 de março de 2011 fez-me um homem mais seguro. Por mais modesto que tenha sido em termos econômicos e midiáticos, o trabalho de planejar, escrever e publicar esse livro foi transformador. Elucidou-me potenciais e portas que anteriormente não enxergava. Levou-me a contatos com pessoas de diferentes nichos profissionais, de diferentes olhares e perspectivas. Presenteou-me com palavras de confiança vindas de quem tem inteligência e sensibilidade internacionalmente reconhecidas. Além disso, permitiu-me aprofundar relações com pessoas queridas, que tomaram o projeto como se fossem de sua própria autoria. O Sérgio, mencionado em parágrafo anterior, é alguém que se enquadra em todas essas categorias. Da Letícia, que tanto me ajudou a desenvolver a prática da escrita, com seu ouvido paciente e sempre acessível, não poderia me esquecer de quando lhe levei o convite, da emoção e carinho sinceros que em seus olhos cintilaram. Sem dizer da Mainá, que desde o começo deixa seus comentários por aqui, da Isabel, que me fez sentir a pessoa mais especial da aula de italiano, da Telma, que fez o mesmo na aula de francês. Tudo isso fez-me experimentar um crescimento sem par, derivado menos do reconhecimento que obtive no decorrer do processo, que da responsabilidade que esses ganhos me jogaram nos braços. Responsabilidade, aqui, não com o sentido de peso, de obrigação, mas responsabilidade boa, saudável, de quem deseja fazer jus ao afeto e respaldo recebidos.

Nem tudo, entretanto, foram rosas. Se, por um lado, reconheço que alcancei muitas metas desde março passado, entre elas uma melhora considerável no desempenho acadêmico e na capacidade geral de estudos, por outro percebo também a involução em outras esferas. A confecção do livro fez-me entrar em contato com sentimentos muito profundos, tanto mais profundos quanto eram sublimados em formas literárias. Algo que, por seu turno, levou-me a pensar constantemente sobre a falta que me faziam. Ao deixar a medicina, não renunciei apenas a uma possível carreira, a uma possível ocupação profissional. Ficou um vazio esquisito. Meus colegas seguiram suas vidas e eu precisei recomeçar. Com as redes sociais pululando, não consegui nem cortar de uma vez as relações, nem conservá-las intactas. O meio termo, que para diversas matérias é o atalho mais seguro às soluções ponderadas, neste caso fez-se um tormento. Angústia difícil de explicar, uma vez que, ao mesmo tempo em que eu nunca fora o cara da integração, o mestre das relações sociais, sentia-me pertencente, ainda que de forma vaga, ao grupo da faculdade. Com a saída, foi como se um vento limpasse a área e não restasse mais nada daqueles anos. Ninguém se recordava de mim, nada que me ocorria dizia-lhes repeito.

De tempos em tempos, camuflado em ricas e inusitadas alegorias, o mesmo sonho me acomete: retorno à Unicamp, situada sempre em grandes altitudes, cercada por íngremes ladeiras. Caminho longas distâncias, subo e desço escadas, adentro salas, corredores. Contemplo um ou outro ex-colega a trabalhar, cumprimento-os rapidamente, sigo caminhando, não paro um instante, estou desesperado à procura de uma pessoa, preciso dizer-lhe tudo isso antes que seja tarde. Quando finalmente a encontro, ela anda, eu ando, a cena não pára nunca, não há tempo a perder. Conversamos rapidamente, em constante movimento. Do nada, então, ela desaparece, confunde-se à paisagem ou à multidão, entra por uma porta misteriosa, vira outra pessoa, uma amiga, uma funcionária local. No último sonho, eu disse a ela que era importante, urgente o que eu tinha a lhe falar. Ela acreditou e disse que já voltava, rapidinho, coisa de cinco minutos, um problema que precisava resolver e depois conversávamos. Quando foi anoitecendo, quando as árvores, o chão, as paredes foram dissolvendo, quando me dei conta de que ela não voltaria, que era mais uma armadilha, quando abri os olhos e dei com o teto enevoado...

Tenho cá minhas dúvidas se a pessoa recorrente desses sonhos não sou eu mesmo, o que me faria, como diz a música famosa, um caçador de mim. Em parte, creio que seja uma boa interpretação, entre as tantas possíveis. Por outro lado, retirar da personagem seu quinhão seria equivocado. Muito das minhas buscas atuais reflete perdas dessa época de Unicamp. Perdas íntimas, independentes de agentes externos, e perdas ligadas a pessoas reais, de carne e osso. Enquanto estava matriculado, andando diariamente pelo campus, sabia que, até o último dia da graduação, por improvável que fosse partir de mim semelhante ato, teria sempre a opção de dizer o que eu sentia. Ao voltar para São Paulo, uma das conseqüências foi anular definitivamente essa possibilidade. Hoje, minhas palavras não contam absolutamente nada para aquele contexto, que deixou de existir quando peguei o ônibus de volta pela última vez. Mesmo que me dessem o horário nobre de todas as emissoras, as telas de cinema de todo o território nacional para falar, eu iria para casa depois da transmissão e voltaria a sonhar o mesmo pesadelo, o mesmo andar sem fim pelas bordas da ladeira.

Refletir sobre o assunto com sobriedade não deixa de ser um avanço. Colocados em palavras, os problemas parecem mais planos, mais comportados. Porém, e sempre há um porém nessas horas alvissareiras, a sombra do ideal pesa sobre a realidade. Preso a um molde, a um contexto que, como eu mesmo reconheço, deixou de existir em setembro de 2008, não consigo pagar-lhe a fiança devida e gozar a liberdade. Algumas de minhas dificuldades de relacionamento, parcialmente vinculadas à timidez, parcialmente vinculadas a uma certa soberba, parece que só pioraram de uns tempos para cá. A trava vocal dos sonhos reproduz-se em situações concretas. Às vezes quero falar com alguém e simplesmente não consigo. É estranho, porque não obedece a uma lógica inteligível. Se seguisse um padrão, se ocorresse somente em noites de lua cheia, até entenderia. Mas não tem regra. Pior é que, com isso, não apenas me distancio de quem gostaria de me aproximar, como deixo uma imagem que não condiz com aquilo que sinto. Acabo julgado pelo que não falo, pelo que não faço, pelo que não sou.

Muito mais teria a dizer sobre cada um dos assuntos analisados acima. Não obstante, é mister finalizar o texto. Concluo-o esclarecendo por que, no título, mencionei as 210 teses. Semana passada, um professor de História comentou com a classe que, nos anos 80, um pesquisador decidiu proceder a um censo acadêmico sobre as causas aventadas para a queda dos romanos. Terminado o trabalho, chegou ao número de 210 explicações diferentes para o declínio do Império. Repito: 210 explicações distintas para o mesmo acontecimento. Para quem acha que sabe tudo de um tema, de uma disciplina, do aspecto mais minimalista possível da vida, pense 210 vezes antes de pronunciá-lo publicamente. Em um mundo onde vivemos sete bilhões de seres humanos, outros bilhões e trilhões de ordens de grandeza imensuráveis de existências; onde o certo e o errado são definidos na fragilidade das facções que se revezam no poder; onde não sabemos nem se pega bem ou pega mal dar um ovo de Páscoa de presente, já que descobriram que as barras de mesmo peso líquido são mais baratas, é muita petulância querer impor qualquer tipo de conhecimento.

Conhecimento que, amanhã, será a mais estúpida das ignorâncias no entender das novíssimas, mobilizadas consciências.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Era uma vez uma mulher


Mulheres são mesmo criaturas especiais. Afinal, foi uma quem trouxe ao mundo o ente perfeito, excepcionalmente lindo e maravilhoso que sou.

Brincadeiras à parte, conto-lhes uma história, lavrada na carne incorrupta do olho mágico que a amplificou.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Desde que soube que me carregava no ventre, abrigando-me da perfídia reinante lá fora, foi feliz. Uma felicidade gratuita. Felicidade, no entanto, que a preço nenhum venderia, pois preço nenhum saberia compensar. Felicidade que fez óbices intransponíveis reduzirem-se a poeira. Felicidade de roseira pela rosa, de poema pela prosa, de algema pela asa, de instante pelas eras. Felicidade que, mais tarde, em cada célula vibrante gravaria a sua marquinha, terna, tênue, inconfundível, ícone vivo do amor maior. Felicidade que a qualquer dor, qualquer grito, qualquer soluço, sempre volta. Felicidade que segura a minha mão e me abraça, para não doerem tanto as vacinas que a vida me espeta.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Órfã pela vida, não pela morte, desafiou as convenções da sociedade patriarcal e, aos treze anos, foi trabalhar em casa alheia, como empregada doméstica. Mais tarde, Deus me livre, virou telefonista, falava com tudo que era gente, um escândalo! Mais tarde conheceu Dauro, casou, teve filhas. Mais tarde aposentou-se. Às vezes gritava comigo e com meu irmão, pelo barulho que fazíamos. Às vezes deixava que eu batesse no bife com o martelo. Às vezes, quando um carro da polícia despontava na esquina, falava que vinha descendo a rádio-patrulha. Às vezes acho que tínhamos a mesma idade.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Ela acabou de dar à luz uma menina, que é como uma lua-guia na mata escura. Como tudo o que é novo e é primeiro, aquele pedacinho chorão de vida a assusta enormemente. Faz que ela se sinta mais perdida e insegura que na época em que era adolescente. Desperta questões que livro nenhum ensina a responder. Quando eu era pequeno, lembro que ela cuidava com carinho de mim. Cortava-me as unhas, penteava-me o cabelo, jogava videogame. Do meu irmão, então, cuidava com ainda mais zelo, ainda mais jeito, tão bebê ele era. Hoje a vejo com a lua-guia nos braços e penso naqueles tempos. Em como tudo o que aconteceu, teve, sim, os seus propósitos. Em como, embalada em berço de amor, sua criança dorme tranqüila, cresce tudo o que tem de crescer, aprende e apreende os sentidos. Descobre, na medida certa, a imensidão do que a cerca, e assim pode sonhar em paz.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. E que até fica engraçada quando chamada de mulher, pois quando a conheci era apenas uma menina. Uma menina em quem bati os olhos e depressa compreendi a luz que me instigaria. Uma menina com quem poucas, pouquíssimas palavras troquei, mas como se a conhecera de outros planos, outras galáxias, tantas vezes tagarelamos em sonhos que, hoje, também parecem pairar em outros planos, soprar de outros ventos. Uma menina que nem sei mais onde mora, a quem ora, por quem chora.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Foi nela que eu dei meu primeiro beijo - tão esquisito, tão espavorido, tão geometricamente implausível, que ósculo, não beijo. Nela dei também meu segundo beijo - aí, sim, beijo, com todas as letras e línguas, dono de cada torção e rodopio, quente e frio ao mesmo tempo.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Minha primeira dose real de romantismo, também meu primeiro porre, minha primeira ressaca, minha primeira dança, minha primeira jura de vingança.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Quando a tarde caía e o verde das montanhas ia tingindo as águas do mar, ela aparecia, como uma sereia. Em vez de cantar e capturar-me em seus ardis encantadores, seduzia-me de outro modo: deitava-se do meu lado, como uma estrela deita-se no céu, sem dizer uma palavra. E aí passava o rapaz vendendo sorvete, e as crianças corriam atrás dele, e um cachorro corria atrás também, interessado no movimento. E um surfista caminhava em direção às ondas, prancha na mão, enquanto sua namorada procurava na cesta o sortilégio do dia. E uma bola sem gomos corria, um brilho fugaz desprendia-se da ilha fronteira, uma gaivota mergulhava o bico profundo no manto plácido. E Deus aparecia da rua, gorducho, contente, metido no uniforme suado, pedia uma cerveja no quiosque do Cazuza, aprovava tudo com um meneio de cabeça. E você virava de repente e parecia espantada, tem alguma coisa errada acontecendo, eu dizia não tem, agora está tudo certo, agora está tudo no lugar, e você acreditava, era eu, afinal, quem estava dizendo. E você me empurrava no precipício e a seguir me abraçava, para ver que não tinha o que temer. E você sorria, e cada músculo da face sorria também, compunha o rosto levado e bonito que me cativara, que era levado e bonito mesmo quando invocado com a algazarra dos anjos. E nos teletransportávamos para lá do cortejo funerário da bezerra, para além do reino dos selenitas, como dois bicões no espaço sideral, filando o creme dos anéis de Saturno. E eu descobria então por que órbitas você anda atualmente, o que achou do presente e da carta, o que pensava de mim antes de a maré subir e desmanchar o que era para ser uma surpresa.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Corpo sadio e alma bendita que, um dia, dar-me-ão o gosto, honra e completude de uma existência em comunhão, até que vida ou morte nos separe. Matéria e espírito que se unam aos meus e se absolvam e aperfeiçoem em novas matérias e novos espíritos, até os últimos artistas da espécie. Amor mais perpétuo que um voto, mais legítimo que um contrato, mais inoxidável que uma aliança de ouro.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Houve um tempo em que eu não sabia mais se era para felicitá-la ou para me calar nos 8 de março, tal a contundência das reprovações. Algumas bradavam: como foi se esquecer de me chamar para o bolo? Outras vociferavam: não sabe que um dia solitário de homenagens no ano é ainda mais machista que sua falta no calendário? Todo dia é nosso dia! Outras, ainda, lembravam: é simbólico, menino, é tudo simbólico.

Como houve um tempo em que não havia estes símbolos e esta consciência, e um tempo em que ainda não há esta consciência, e um tempo infeliz em que nunca haverá, e um tempo mais infeliz em que tentam inverter o mecanismo ao invés de destruí-lo. E um tempo de mármore sobre as contendas, dúvidas e clichês, e um tempo mágico em que os símbolos serão compreendidos e as nuances, consideradas, e um tempo e um templo em que nada disso terá mais importância, para mim e para todos, pois a pauta estará superada.

08/03/2012

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Carnaval


Foi no Carnaval
Aquela noite especial
Que não fez cinza quarta-feira.

Nem quinta, nem sexta,
nem na septuagésima-sétima
fogueira.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Segredo


O segredo de tudo quanto seja eterno está no etéreo lapso de tempo em que o dia vira noite.

(Em termos outros, quando toda a beleza de um ser inunda os dutos mais intangíveis da consciência, à pele um quente arfar, bem-estar, felicidade).

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Fosse


Fosse igual, não era diferente.
Fosse soro, não era serpente.
Fosse tudo, não era nada.
Fosse plano, não era escada.

Fosse gato, não era cão.
Fosse rei, não era aldeão.
Fosse noite, não era manhã.
Fosse louca, não era sã.

Fosse pedra, não era perdão.
Fosse Pedro, não era João.
Fosse menos, não era mais.
Fosse venho, não era vais.

Fosse carne, não era osso.
Fosse velho, não era moço.
Fosse bicho, não era gente.
Fosse olho, não era dente.

E fosse exatamente como eu queria,
não virava poesia.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

La Place Rouge


Jérome se promenait à la recherche de fleurs. C'était le printemps et il aimait regarder l'épanouissement des couleurs et des parfums après trois mois d'obscurité.

Il se promenait et une chanson resonait obstinément dans sa tête errante:

"La Place Rouge était vide
Devant moi marchait Nathalie..."

Oui, bien sûr! Il avait aussi sa Nathalie. Elle n'était pas blonde comme la guide en Russie, elle ne parlait rien en phrases sobres, mais elle était jolie... Plus jolie que les plaines d'Ukraines. Plus charmante que la neige blanche qui tombait sur la ville où ils habitaient.

Tous les matins les deux jeunes prenaient l'autobus et allaient ensemble à l'université. Le garçon étudiait la médecine, la fille faisait l'ingénierie. Un jour, Jérome pensait, certainement un jour magique, les deux amis pourraient arranger ces sciences-là pour expliquer, par exemple, la mécanique d'amour, ou le statique des heures. Le flux du temps, mauvais fantôme qui n'existe pas, cependant passe, impatiemment...

Il y avait des jours où ils dormaient pendant les parcours. Quand cela survenait, leurs rêves coincidaient: un petit bois, des chemins couverts de roses, un perroquet à parler le français du port de Marseille, des autruches jaunes, des canards bruyants, des sorcières antiques, des chaudrons, des Chaldéens... Trois pyramides qui luisaient comme des lunes d'or dans la brume épaisse. Soudain, la nef tournait à droite, l'Univers tournait à gauche et ils se trouvaient déjà au café Pushkine, où ils buvaient un chocolat très noir. Il faisait froid dehors, les drapeaux rouges s'agitaient comme une hemorragie au vent violent de l'hiver communiste...

Une fois, Nathalie est descendue et n'est plus revenue. Elle avait obtenu son diplôme universitaire et n'avait pas besoin de voyager tous les jours. Mais Jérome ne le savait pas, ne pourrait pas le savoir. Il pensait qu'elle était en retard, qu'elle avait oublié de se lever, qu'elle était chez elle, dans son lit, en écoutant une chanson italienne. Il pensait que le matin suivant elle viendrait, la semaine suivante elle serait là de nouveau, elle monterait les degrés de l'autobus, comme toujours.

Et pourtant elle n'est pas venue le matin, pas venue la semaine, pas venue le printemps. Et dans la petite rue du bois des rêves il marchait seul, loin de tout ce qu'il pourrait reconnaître, avec peur de la procession d'animaux et ses bruits violents, sans les yeux bleus de la belle fille pour allumer des chemins étroits...

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Devir


Mais que pensar naquilo tudo que vamos fazer em 2012, talvez seja a hora e o caso de pensar no que fizemos em 2011.

Lembro, por exemplo, que a primeira promessa que jurei, quando ainda lucilavam as bolhas de champagne em minha taça, foi a de enfrentar os medos. Quais? Todos eles. O que me incomodasse, o que me amarrasse os passos, o que me fizesse sombra ao sorriso surpreendido. Nem que, para tanto, tivesse de abrir mão da minha tranquilidade. Nem que, ao final do embate, a única recompensa a restar fosse a consoladora sensação de que não fiquei parado, esperando a vida me levar.

Lembro que prometi também não mais protelar. O quê? Os mínimos acontecimentos. De uma consulta no médico a um livro interessante. De um telefonema a um par de calças novas. De uma bicicleta no quintal a um parente no interior. De uma viagem sonhada à arrumação nos papéis da gaveta. De um abraço sem causa aos gravetos da paisagem de dentro.

Lembro ainda que me comprometi a algo muito simples, ou que parecia muito simples no frenesi dos fogos de artifício: dar valor. A quê? A quem? Ao que tem valor intrínseco: a barriga laranja dos sabiás que vem cantar no meu quintal; a virada olímpica na piscina; a chuva que limpa o ar e realça o brilho do sol; o carrinho de madeira que meu avô trouxe de São Pedro; o lento desfile do rio e seu encontro com o oceano; o prato na mesa, o teto na casa, a colcha, a fronha, o lençol; o pai, a mãe, o irmão; o sermão da montanha; os lírios do campo de Deus.

Lembro que afiancei procurar o lado bom do que sobreviesse. Onde? Nos recônditos da fé, se recurso mais concreto não me houvesse, mas sempre, impreterivelmente. Interpretar cada fato como ensejo para crescer, para me aprimorar. Não me esconder, não esmorecer, não fraquejar. Não ulcerar ninguém nos espinhos de meus naufrágios. Nem que o pior me acontecesse. Nem que um amigo me traísse no afã de sôfrega inveja. Nem que os favos de doce recordação estilassem gotas de fel. Nem que eu fosse tragado pelo gargalo da solidão. Nem que se esfarelasse o oásis dos tártaros. Nem que passasse a viger o silêncio babélico da fonte seca.

Lembro como se fora ontem, mês passado, mil novecentos e oitenta e seis, no tempo dos magos reis... Lembro e vislumbro que amanhã prometerei mais uma vez o que não posso cumprir. E, no devir de mais um ano, ser humano, sem resposta, hei de inquirir: o que se fez?

(30/12/2011)