sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Mãos e pés


As mãos esperam, pacientemente, sua vez de lançar os dados. Os pés chutam os pinos, sapateiam sobre as regras, pisam no tabuleiro.

As mãos escrevem bobagens. Os pés cruzam fronteiras, conquistam territórios.

As mãos acenam, no cais, a impotente nostalgia. Os pés deixam pegadas, abrem caminhos.

No jogo humano, mesmo quando tais caminhos conduzem ao abismo, os pés são saudados como heróis. Ao passo que as mãos, mesmo as pertencentes aos irmãos, mãos que assinam perdão e até se algemam para que outras sejam livres, acabam esquecidas. 

E assim é a vida, ou as vidas, ou ávidas por demais as expectativas sobre o que, como bem dito, não passa de um jogo bobo (e algo cruel).

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Vencer


Vencer na vida. Uma expressão que sempre me intrigou, na medida em que assume que cada decisão nos põe no fio de uma navalha.

Se alguém me questionasse hoje como vencer na vida, a resposta, claro, seria uma franca declaração de incompetência para o tema. Não sei como vencer na vida, não planejo saber um dia.

Insistida a pergunta, eu diria que vence na vida quem aprende a definir sua vitória. Se, por vencer, estivermos tratando da imagem clássica de sucesso, triunfa quem melhor mobiliza o marketing pessoal. Quem domina a arte de parecer bom, parecer justo, parecer tudo aquilo que o espelho íntimo não reflete. Quem não se constrange em largar na sombra os filhos e flores da luz.

Se o conceito é outro, vence na vida quem se dedica a resgatá-los, alentá-los, niná-los. Quem, reconhecendo a essência da fragrância, cuida anonimamente do jardim, como se fosse céu.

Como se fosse seu.


sábado, 18 de agosto de 2018

Erro


Talvez seja um erro tentar entender com a razão o que dela se dissocia por sua mesma natureza. Vete-se o talvez, aliás: dite-se e carimbe-se que sim, que é engano dos mais imperiais, como os tropeços dos primeiros passos e o engasgo das primeiras sílabas.

De equívocos tais, boa parte dos desencontros entre fato e expectativa, doação e justiça. Precisamente porque não há fatos nas emoções, não há portos seguros ou âncoras neste zarpar desgovernado de quem desbrava os vagalhões da esperança. E porque a justiça passa longe dos sentimentos (não de todos, acho, porque trabalho para que os meus assim não trabalhem, supremamente destoantes do espírito das leis vitais, porém de muitos). Que justiça derivar de uns olhos que guardem qualquer luz misteriosa ou de uma voz que, apesar de boquirrota, soe entranhadamente familiar?

Tudo isso conquanto, descontadas as fascinações, das fuinhas traiçoeiras às de rara felicidade, linhas há em que se não deve pisar. Uma vez bagunçadas, não retornam ao pontilhado original, pondo em xeque a própria essência da brincadeira. E eu já vi passos tortos demais por aí, para me calar.

E eu me calo.

Não devia. Desde a primeira vez, é provável que adequado seria rebelião. Adequado seria falar tudo que me andava pelo sangue, tudo que me distinguia dos inúmeros répteis vitoriosos, a se jactar, de esgueira, pelos cantos, na falsa humildade (ou seria umidade?) das sombras. Adequado seria gargalhar quantas vezes fosse necessário, quantas me desse na telha, mas aí viriam as provas, os boletins, a recuperação, e também é adequado ser o aluno magnífico, que causa inveja não pelo esforço desmedido com que se aplica nas tarefas, mas por fazê-las parecer fáceis demais.

Ô, moça, ele não presta! Ele não ouve. Ele debocha do seu coração de isopor.
Ô, moça, você se encanta com as bolhas que ele assopra, as bolhas estouram, voam para longe, são incrivelmente intransparentes.
Ô, moça, tu me ignoras, asno que te carrega.

Foi assim desde o começo. O meu lanche vinha embrulhado no papel alumínio, um pãozinho simples, amanhecido, ela não parava de olhar para o gigante saco de salgadinhos alaranjados, o CD do Iron Maiden levemente arranhado, a atitude preguiçosa e não fingida do projeto de músico (ele era, efetivamente, um grande preguiçoso, até para trocar de nota era preguiçoso, quanto não seria para reparar as melodias que realmente tocavam no peito?).

Foi assim muitos anos depois, quando as singelas rosas foram trocadas por um capim alucinógeno, os piqueniques por coquetéis com janotas empolgantes. Sempre me perguntei onde errei, ultimamente o que me pergunto é onde acertei, afinal, em retrospectiva, tudo parece um erro, exatamente como no começo, um erro tentar entender com a razão, e daí se eu tiver mesmo razão, quem liga?

Sempre me perguntei, sempre me perguntarei. A propósito, que horas são? Em que século vivemos? Por que a mensagem vem sem texto, sem nexo, vem como um barulhinho de alarme que rasga o tecido da noite, fazendo os vizinhos despertarem de seus sonhos mais bonitos?

Pisou na linha!
Nem percebeu.
Só eu estava olhando, café-com-leite.
Eu e minhas regras.
E algumas rugas.

E fugas.

sábado, 11 de agosto de 2018

Grãos


De pouco tenho certeza, muito pouco. E, por pouco, canônico, é que vale tanto, vale virtualmente tudo, cada piscar dos olhos, sístoles e diástoles mundo afora, nesta viagem que é a vida.

De pouco tenho certeza, de algo não tenho dúvida: os grãos, sim, os grãos, insignificantes grãos como os que formam o pólen e a paz cotidiana, os grãos são o que abre caminhos, estica tempos, proclama sonhos, reduz atritos.

Grãos, também, o que macula, magoa, macera, maltrata: um grão de negligência, um grão de indiferença, um grão de deixa pra mais tarde ou você não liga, não é mesmo? Pequenos pontos que borram o céu, pesam os ventos, truncam palavras tão mais bonitas quando ditas todas juntas, sem reparo.

Os grãos, tão desimportantes e inofensivos quando descuidados por um dia, o que é um dia, afinal? Um grão na ampulheta, um grão que passa e a parede descasca, o formigueiro cresce, o piso cede, a noite cai.

Um dia e mais um dia, a gente corrige, dá tempo depois, claro que sim, que, enfim, não dá.

Os grãos, a Terra, a pá.

As mãos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Evangelho


Há quase dois mil anos alguém escreveu: "Por que vês tu, pois, o argueiro no olho do teu irmão, e não vês a trave no teu olho?".

E as guerras se sucedem desde então. Teorias se digladiam, nuvens se entrechocam, inflam-se de metano plasticíssimas verdades.

De todos os lados, para todas as direções, como locomotivas desgovernadas.

Luta? Não está nos trilhos, nos itinerários, nas cancelas, na extração cúpida de mais carvão. Luta é a parca sobrevivência dos que se encavernam e salvam seus filhos, vendo-os brincar, símiles sombras, no regato subterrâneo que afugenta a sede.

Glória? Não está na vitória, no triunfo, na subjugação. Glória é a insciência em que os argueiros, tornados lágrimas, gotas de amor e medo, esperança e luz, unem novamente os irmãos extraviados, na página de um mesmo evangelho.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Dedos


Uma falha, um erro, todos são processos normalmente longos, magoados, doloridos.

Espanta como, em cada fase desses processos, rara é a mão que se estende ou o olhar que se aproxima. Espanta mais como, concretizada a falha, exposta a fraqueza, sobram dedos que apontam, apertam o machucado, indicam o que devia ter sido feito.

Onde estavam durante o caminho? Se tão sábios e tão enérgicos, por que não impediram os acontecimentos quando estes ainda não o eram? Por que não escreveram uma carta? 

Por que, impotentes para mudar o curso, não ficaram, ao menos, e fizeram companhia?

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Horas


Há horas gentis no relógio, horas que se dedicam e escutam, horas sinceras e profundas, horas que até amam e cuidam de cada segundo, comprometidas com o tempo que pontuam.

Estão ali, entre os ponteiros, como as luas e os planetas, girando.

Por vezes, ficam tontas e são empurradas, espezinhadas, omitidas dos créditos, deixadas de lado. E, no entanto, sempre pedidas, nos discursos emocionados, nas filosofias de boteco, nas utopias de vitrine. 

Horas heroicas, existam apesar dos trancos, das bombas impostoras que lhes roubam os tique-taques! Permaneçam quando tudo mais, volúvel polaridade, relampejar nas nuvens açodadas.

Sejam a esperança latente de cada novo dia!

sábado, 14 de julho de 2018

Raias


Talvez eu tenha chegado tarde, atrasado como sempre, correndo sobre a esteira das estéreis ilusões.

Talvez, ao revés, tenha chegado cedo demais, precipitado como as chuvas, os raios, as descargas adrenérgicas que nos fazem correr e lutar, debater-nos contra os fatos à deriva.

Talvez nada que ver com o tempo, com a ascensão e queda das grandes potências pineais. Um vale, vento, galhos, cores impossíveis preenchendo o que deveriam ser contornos de um crepúsculo ideal.

Talvez, raias paralelas, as águas não se encontrem.

Talvez, por sobre, nadem, remem, sobrevivam.

Vivam.

Quem saberia?


segunda-feira, 9 de julho de 2018

Cobranças


Sempre é uma palavra traiçoeira, porque impossível de garantir. Uso-a, todavia, como licença poética, para dizer que sempre me senti cobrado a manter os pés na realidade. Uma cobrança sem rosto, sem nome, confusa como os vultos que se esgueiram nas zonas fronteiriças entre a espera e a ação.

Sempre, também, me rebelei contra tal ordem, embora, de rebelde, tenha, quando muito, o cabelo quando acordo. Insurjo-me porque, na profundeza das horas sozinhas, as poucas horas verdadeiramente minhas, sei que a minha melhor versão, a versão em que me salvo, é a versão do que imagino. A versão na qual não preciso, absolutamente, preocupar-me com as restrições, porque tudo posso superar: meus medos, meus modos, minhas manias entrincheiradas, a propensão a crer que não vale a pena ou já passou o tempo.

É um viver irreal, admito, mas longe de falso e perto de pleno. Um sonho manco, quem sabe, mas, ainda assim, desejo movente. Força que abre caminho.

Nele, as noites são longas, os dias têm música, as mais francas fragilidades de uma alma desorientada desabrocham como os botões de opulenta primavera. De uma estação que começa, termina, renova, surpreende e deixa saudade, mas também rastro, álbuns, fotografias nas quais se reconhece o lustro de uma época especial, a que se pretende, lá na frente, por estranha e magistral contradição, regressar.

Nele, planícies alagadas vêm à tona e esclarecem o mapa dos geologistas, dando rumo à história sem sentido das camadas do terreno.

Nele, os dramas são suaves, dissolvem-se no vinho, na dança, na chama de olhares que se chamam e se somam, mesmo quando nunca mais se vejam.

Nele, mesmo os mais severos desentendimentos compreendem que ainda há tempo, ainda é tempo, loiros, negros, ruivos ou castanhos, os fios todos acabam brancos, as mãos enrugadas, e ao se encontrarem, já não importam cor e textura, a carícia não envelhece, o carinho é o ato mais próximo da eternidade, antídoto das cobranças, parâmetro das danças que os pés, ancorados na realidade ou nos cometas, arriscam quando ninguém está olhando.

Nele, não se pergunta como, mas quando.

Quando?

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Passou


Não era costume alguém parar assim, no meio da ponte. A gente em trânsito reclamava, a calçada era estreita, atrapalhava o fluxo.

– Que fluxo para mim? – caberia protestar ao homem das muletas, que não podia andar senão em lenta marcha, com esforço duplo de dor e equilíbrio. Mas não, o homem das muletas não protestava, o homem das muletas só se preocupava com o sol se pondo, com o rio de ouro no lugar do rio pútrido, a se arrastar lá embaixo, como se cruzasse selvas mitológicas.

Nem ligava para o cheiro que emanava das águas infectas, para o barulho sem fim dos carros e seus vômitos monocarbônicos, para a histeria da política e do futebol. Só o que via era a trivialidade do crepúsculo, da cena que se repete, diariamente, desde que a estrela é estrela e o homem é homem.

Mas ele não era qualquer homem, era o homem das muletas, o homem que poderia se jogar da ponte ou oferecer biribinhas aos transeuntes, que o interesse provocado seria o mesmo, as pessoas passariam, o rio passaria, a tarde passaria, eu passaria.

E passei.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Boas vidas


Eu estava de carona no carro e havia colegas no ponto de ônibus. Ela dirigia e, avistando-os, perguntou-me se não convinha parar e pegá-los.

– Melhor, né?

Dizer que me agradou a ideia seria mentira das graúdas. Como não minto, ao menos não nestas verdades fúteis de relatório, confirmo que achei péssima a iminência de dividir o veículo e, com ele, a companhia. Melhor o cacete! Mais gente pra quê?

Pouco podia, no entanto, contra a decisão. Não tanto por não ser dono do carro, nem pelo caráter retórico da pergunta. Antes pela nulidade que, hoje percebo, era eu na época, especialmente para ela, para os colegas do ponto, para as autoridades acadêmicas e o caminho que, casualmente, dividíamos, empoeirados.

Para não ficar sem dizer palavra, como um espantalho de vocálicas paragens, lembrei-lhe, logo após ela buzinar aos amigos, que bem se poderia reproduzir uma cena típica de comédia italiana. Acabara de ver algo igual no filme "Os boas vidas", com Alberto Sordi: dois tipos acenavam para os trabalhadores cansados, que esperavam a condução; fingiam encostar a "macchina", a fim de lhes prover carona; arrancavam a toda velocidade, dando uma banana aos iludidos operários, que espumavam de raiva com o truque pregado.

Lembrei-lhe e, antes, houvesse esquecido, visto que sua reação infligiu-me uma das mais profundas revelações de solidão que jamais viria a conhecer em vida. Não apenas o sentido humorístico da cena do filme, que eu me esforçava em realçar, não foi compreendido, como, olhando-me como a um alienígena, ela me fez perceber que eu não tinha a menor chance de me aproximar, dela ou de qualquer terráqueo, enquanto visse graça em antigos filmes italianos.

Embora morasse mais perto do ponto de ônibus que todos os amigos caroneiros, fui o último a ser entregue em casa, aquele dia. Apesar disso, ou por causa disso, praticamente nada mais disse em todo o caminho, exceto nos minutos finais da imensa volta que demos pelo bairro universitário, quando o carro já se encontrava na avenida em cuja esquina se encontrava meu pequeno apartamento. Devo ter dito palavras banais, o que me era altamente custoso, aliás, uma vez que nada havia de banal em estar com ela, em projetar sua companhia por dias e noites a fio, como então o fazia, dias e noites que seriam tudo, menos banais.

Não faço ideia se meu abatimento ficou patente, se me esforcei ou não para contê-lo em frente às outras pessoas que estavam no carro, se ele seria minimamente entendido, na época ou hoje, pelos colegas e por ela. Não faço ideia se a revelação de solidão de que falei era um destino, uma flecha, uma piada.

Sei que, por linhas tortas, conheci-me melhor aquela tarde. E, embora uma voz irritante diga que mudei irremediavelmente naqueles três, quatro quilômetros percorridos, por ter sentido na pele a distância entre o ideal e a realidade, continuo, uma década depois, vendo meus filmes, rindo de suas cenas, conquanto, não raras vezes, o motor do carro falhe e este Alberto Sordi aqui se estrepe, sua brincadeira de fuga virando um pega-pra-capar.

domingo, 1 de julho de 2018

Viagem


Ontem não conseguia dormir. Havia voltado no tempo e o fuso horário da viagem atormentara-me o sono.

Passeei por horas que quase não existiam mais. Impressionou-me o fato de as mesmas folhas pairando no ar, como berços que balouçassem, de um lado a outro, a embalar ventos futuros. Impressionou-me ainda mais o mesmo ritmo fascinado em que batia meu coração, diante das delícias e compunções da incerteza, visto ter esta envelhecido tanto quanto eu, que agora sei que o manto era bem maior que o mistério que nele se ocultava.

Em dado ponto da jornada, perguntei-me, com sinceridade e uma pitada de desespero, por que a continuo fazendo. Entrar na máquina, ajustar a data, percorrer as rotas, tudo é angustiadamente opcional.

Encontrar-me com a poeira de que sou feito, a poeira que sobe da estrada por que vim, não. E é por ela que puxo o ar, apesar da seca poluição. Por migalhas de seu puro aroma é que rodo a chave na ignição e, atravessando o perigo dos mares, reconheço-me no balanço das ondas.

Elas assustam, devem assustar, como toda turbulência. Anômalo é o corpo que não pula à trovoada, os olhos que não piscam no instável relampejar.

Assustam, não paralisam. Não dissipam. Não esquecem.

E aquele que fui cumprimenta o que não fui, para que juntos, de mãos dadas, aprendamos algo nestes cifrados diários de viagens e possamos ser.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Diário


Já tive um diário, há dez anos atrás.

Comecei-o em um momento de grandes turbulências, quando a confusão sobre o que fazer da vida era ainda uma semente. Estava dividido entre duas cidades, múltiplos interesses, uma genuína certeza de alma. Inevitável que, mesmo em anotações esparsas sobre o dia-a-dia, estilassem centelhas de um fenômeno bastante mais profundo.

Quando leio algumas das palavras que escrevi naquele tempo, dou risada. Outras, entretanto, ameaçam marejar os olhos, percebendo que prediziam meu futuro e, mais que videntes, revelavam a essência de sentimentos que, até hoje, perduram. E, de perdurar, atestam-se grandiosos e verdadeiros, justamente como o melhor que existe em cada um de nós.

Embora me dê conta do grande valor que aquele conjunto pequeno de textos reúne, nunca mais consegui começar outro registro semelhante. Sempre que tento, um pudor corta-me a iniciativa, advertindo-me de que o tempo é precioso e outras atividades merecem prioridade, inclusive no plano da escrita. Sinto-me, ademais, levemente anacrônico anotando no papel eventos do cotidiano, quando não um pouco envergonhado de dar vazão crua a impressões e emoções que, como os dias, passam e alternam-se sem maior significação.

Por que guardá-las?

Por que não guardá-las?

Todo tempo me pergunto, todo tempo me respondo, hora alguma compreendo.

A tempo: era eu, em 2008, uma pessoa bem diferente do que sou agora, em muitas coisas. Talvez uma pessoa melhor, mais romântica nas suas aspirações e na certeza de que elas se realizariam. Como hoje, entretanto, meus objetivos de vida não miravam o ouro que brilha na cúpula dos obeliscos; miravam a luz ao redor, a luz que, projetando-se do coração, completa o seu ciclo no encontro com as luzes dos outros corações, dando alimento (e alento) à travessia.

Era eu, em 2008, um cara que merecia ser mais conhecido do que foi nas tardes de chuva e pôr-do-sol.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Valsa


A valsa toca.

Tudo gira à música: planeta, ponteiros, telencéfalo, as rodas do carro que passa a toda velocidade, contradizendo a madrugada. Ainda as partículas, sub-partículas, tantos níveis mais na hierarquia da matéria.

Quem se importa se há uma reunião amanhã? Se um bater e fechar de portas, um subir e descer de escadas? Se, passado o carnaval, vêm as cinzas, a quaresma, o solstício de inverno, outra reunião? Se, una contingência, múltiplos desencontros?

A valsa parou. Canta, agora, a saudade. Uns olhos azuis em Peruíbe, que, na verdade, era o mar do Caribe, ou a balsa de Ilhabela, ou a origem das águas.

Ou, ainda, dessas mágoas de coração, que a gente já nem lembra de onde vieram e, de não lembrar, embrulham-se nas ondas e tornam à praia como esperança, lavando os pés de quem, humildemente, não desiste – e dança.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Apreciar


Há muitos caminhos, inúmeros, infinitos, entre eles a apreciação e a depreciação.

Apreciar exige mais, porque, em última instância, significa reconhecer as próprias limitações, sublinhando o dom alheio. É avaliar as construções não pelo arrojo de suas formas, mas pela liga de seus pilares. É a desprendida compreensão de que houve um antes e há um depois.

Depreciar pouco demanda esforço. É o ego a se proclamar sultão. Ditadura de vizires ambiciosos, bajuladores, donos não da verdade, mas do direito de outorgá-la. Vala em que se confinam, ceifadas no grão, as mais nobres iniciativas, pois que estímulo para tentar?

Que ar?

Há muitos caminhos, muitos caminhos há, antes de se encontrar.