quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Rio

 
O rio, quando canalizado, é expulso da cena cotidiana. Fica por baixo dos nossos assuntos e nossas preocupações, confinado a uma lida melancólica, plangendo murmúrios dolentes pelos ralos da cidade.
 
Então vem a chuva. E chove mais. E chove mais. Os carros boiam, o lixo flutua, as ruas param, o jornalista vai ao êxtase com a audiência batendo recorde. O prefeito novo aparece, acusa o prefeito velho, que acusa o prefeito novo, que promete que vai mudar o que aquele prometera conservar, ou vice-versa. Ambos finalizam sua participação irmanando-se no bordão democrático de que lutam pelo povo, sofrem pelo povo, vivem pelo povo. Os defensores de um atacam os advogados do outro, amaldiçoam-se mutuamente por vinte gerações, indignam-se com a imprensa corrupta, insultam-se gastronomicamente: coxinhas, croquetes, empadas, massas folhadas, não faltam acepipes em tão farto coquetel.
 
No auge da líquida conflagração, é curioso ver como o rio procura de volta o seu curso natural. Como, em meio ao caos, há um quê trágico de beleza neste triunfo da natureza. Como ele nos grita que, à base de concreto e improviso, sua voz não se calará.
 
E o oposto também. Nas secas, a despeito da funesta escassez, o caminho se mantém. É bonito. É esperança. Há uma lógica no solo que, apesar dos pesares, não se verga à ilógica de seu uso predatório, nem se anula facilmente pelos ciclos que independem da urbana ingerência. Uma história que se escreve com o homem, contra ele, a seu despeito e, inclusive, sem ele.
 
Que significado isso tem agora que começa o período eleitoral? Nenhum. E agora que vivemos época de estiagem? Nenhum. E agora que a inflação assusta os brasileiros? Nenhum. E agora que o Dunga fez a primeira convocação? Nenhum. E agora que a USP está em greve? Nenhum. E agora que querem trocar tudo por fibra óptica? Nenhum.
 
E agora que meu aniversário está quase chegando? Ah, aí sim é provável que resida algum significado. Todo ele, talvez. Essa coisa filosófica que dá na gente de pensar que a vida seja esse rio que seca, esse rio que cresce, esse rio que escondem e, de repente, emerge, valente e também incômodo, importuno, deslocado de sua função, graciosamente alheio aos planos e curvos diretores.
 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Virginiano

 
O virginiano é alguém muito paciente. Demais. Irritantemente, dir-se-ia. Um grande ator, deveras, escutando a mesma ladainha pela milésima vez e acusando surpresa, fingindo acreditar na sinceridade de mais uma procissão dos erros.
 
O virginiano é também muito sábio, muito correto, muito ditoso, muito bonito. Capaz de mesclar, em surpreendente profusão de tato e galhardia, o impulso que acicata e a sensatez que conjetura, o fascínio que deslumbra e o juízo que modera. Não fosse a grave falha de se subestimar, o triste pecado de firmar os pés no solo da modéstia, seria perfeito. Valha-me a licença poética das épocas verbais: perfeito, não. Mais-que-perfeito!
 
Apontado injustamente como sujeito inclinado aos cálculos, o virginiano na verdade é uma vítima deles: isolado e ignoto como as variáveis, jogado ora a um lado, ora a outro da equação. Uma letra prisioneira dos números que os humanos tanto gostam de acumular.
 
Entre leão e libra, o virginiano chega a ser um herói nesta sumária, destrambelhada biografia. Herói porque lhe falta vilão, e quão mais difícil faz-se o heroísmo sendo assim. Herói porque, no fim, o leão rugiu, a libra pesou, ou o leão calou, a libra voou, tanto faz. Não acredito em horóscopos mesmo.