Era favorita – do público, mais que da crítica. Entrou na pista com toda a graciosidade que lhe cabia, envolvida pelas esperanças da torcida e com a adrenalina esmurrando-lhe cada vaso, rareando-lhe, nos brônquios, o ar gelado. Respirava, porém, como se todo o oxigênio fosse seu por direito. A única criatura viva sobre a Terra.
Nos primeiros saltos, perfeição. Leveza de quem nascera para desafiar o chão. Certeza de quem empenha a mais fina joia de si por um propósito superior. Após uma sequência difícil, tecnicamente arrojada, desastre: a ponta do pé esquerdo cutuca o desavisado tornozelo direito, conduzindo o corpo à queda.
Altivez na recuperação, novos gestos exímios, finalização à altura do espetáculo. Quase riso, quase lágrima, quase dúvida do que fazer. Sabido desconto nos cômputos finais. Crepúsculo de mais um ciclo olímpico.
Olhando a frágil menina, perdida em sua atitude admiravelmente triunfante no aguardo da nota (da sentença) decisiva, pensei comigo: tanto esforço, tanta renúncia, uma rotina exaustiva de treinamentos, tudo, de repente, esvaindo-se por um ou dois centímetros inoportunos. Interjeições, faces, mãos erguidas, tudo, num instante, embaralhado nas lágrimas retidas dentro de seus olhos, acusando-a de fracassar ou, pior, estendendo-lhe aquela compaixão protocolar, vácua de sentimento, que cavouca ainda mais o buraco da decepção.
Vicissitudes do esporte, atinei, óbvio como um repolho. Vicissitudes da vida, corrigi-me a seguir, esmerando-me para não perder a profundidade do clichê.
Filosofias baratas de lado, o caso é que todo atleta, olímpico ou não, está sujeito a não desempenhar, nos poucos minutos de performance, tudo aquilo de que é capaz. Alguém pode até dizer: "ah, mas os campeões consagram-se justamente por consegui-lo sob pressão, por não desvanecer nos momentos de decisão".
Verdade. Por outro lado, fico a refletir: e o feito dos que não conseguem? O feito dos que caem com os patins e têm que se levantar, para levar adiante o espetáculo? Haverá neles menos grandeza? O fato de entrar em um estádio lotado e, por cinco, dez minutos, representar em uma coreografia todas as emoções de uma existência, por acaso não conta? O esplendor, a beleza de cada gesto, certo ou errado, preciso ou quebrado, tecnicamente falando, não valem por si só? A simples chance de fazê-lo; de olhar, um dia, para trás, sabendo que a viveu, não possui um valor intrínseco, mais inestimável que o numérico resultado?
Há de contar, há de possuir, hão de valer. Tem que ser assim. Tem porque a glória do vencedor, como o opróbrio do perdedor, são efêmeros demais para se impor como critérios. Tem porque, transcorrido o tempo, uma medalha na parede não difere tanto de um prego, uma rachadura, um mosquito, qualquer coisa dessas que a gente mal discerne conforme a vista vai falhando.