terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Aljava


Cada fim de ano, tenta-me o impulso de pensar nos infinitos cenários em que a vida seria mais fácil. Universos alternativos, assim poderíamos chamá-los, em que se teria mais sucesso, mais paz, mais triunfos, menos tribulações.

Para alguém como eu, que dá um boi para não entrar numa briga e uma boiada para dela sair o mais rapidamente, seria um sonho, por exemplo, não ser envolvido em conflitos que não são meus. Um sonho dizer, a quem me elege como adversário, que fique à vontade para rapinar os louros da vitória, pois nunca estive na disputa. Um sonho não ser arrastado por dilúvios de iradas borrascas renitentes, que se pretendem divindades. Um sonho poder responder somente pelo pequeno cotidiano meu de cada dia, que a poucos interessa e ainda mais poucos atinge, com suas felizes flechas sem ponta.

Não é assim, contudo, que a vida funciona. Um belo dia, você está na porta da casa em que cresceu e um forasteiro lhe diz que você não pode mais entrar, pois as regras do condomínio mudaram e o senhorio agora é outro. E você se vê então despejado não de um imóvel, que nunca reclamou ser seu, mas das memórias que nele construiu. Da família que nele celebrou, como se templo fosse, a sua fé.

Você se vê despejado da própria fé.

Ou está nos braços de alguém e, de repente, eles soltam, deixam-no cair no abismo, traem a força que tanto ostentaram.

Ou vê um legado precioso ser consumido, lentamente, pelas traças, sem poder interferir.

Ou até esses pequenos, desnecessários arranhões, riscados por pedras que não deveriam estar erguidas, em ruas apinhadas de crianças que brincam; de gente tão parecida, que até se confunde, no reflexo fugaz de um espelho.

Pois bem, cada fim de ano, tenta-me o impulso. Por um instante, nada mais. Pois logo me dou conta de que, nesses universos alternativos, nenhum dos sonhos existiria tal como aqui existem, puros e potentes, livres pelo fato exclusivo – simples e extraordinário – de serem o que são: sonhos.

E sem o esteio de cada despejo, o que eu saberia sobre ter um lar?

E sem cair no vazio, o que eu saberia sobre voar, sobre o que é pleno?

E sem o risco do esquecimento, o que eu saberia sobre honrar os que me amaram?

E sem cada pedra atirada, o que eu saberia sobre o perdão?

Bem se venha, 2020, real como cada começo de ano e suas esperanças nesta vida nunca fácil, mas sempre vitoriosa, porque vida!