sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Saudade


Da bola correndo na terra, do sol peneirado nas copas, dos peixinhos do lago, das tiras de pastel, dos blocos de papel, das pastilhas de hortelã, das malas recém-abertas, do martelo batendo o bife, dos gatos e cachorros da vilinha, das voltas em torno do shopping, esperando-a fechar a loja.
 
Da orquestra na praça, do sininho da Dionísia, do tráfego, do rádio, do horizonte embaçado, dos caminhos do rio, da janela entreaberta, da loira na sacada, do pônei, do ioiô, do pião, das garrafas de coca-cola, do tambor de gás.
 
Do caderno que devolvi, dos outros que preenchi, dos pedacinhos rabiscados que guardei, dos gramados dourados, dos microscópicos universos de tempos expandidos.
 
Do outro lado da rua, dos silêncios sorridentes, dos sorvetes na casquinha, das próximas paradas, do frio tão elegante de chapéu e cachecol.
 
Do desejo de não chegar.
 
Daqueles medos miúdos que hoje, um a um, se concretizam.
 
Do homem que eu queria ser, podia ser, devia ser, tinha tudo para ser e, quem sabe, por sorte, já o seja.
 
Das outras saudades que tinha e perdi, larguei por aí, já não lembro mais.
 
E você? Não se envergonhe. Aprochegue-se e conte: do que tem saudade?
 

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Lago

 
Foi o mais perto que chegou. Era um lago o amor, a perder de vista, soberano esplendor. Viu-lhe o reflexo nas águas, viu dissipadas as mágoas e os temores. Tocou o futuro, cristalino e calmo, repleto de vida. Teve, nos dedos, a pepita pura. Confirmou-se naquele olhar risonho, olhar de sonho, naqueles cabelos que se trançavam por trás das costas, como uma segunda medula.
 
Mas que, às vezes, mesmo a mais bela quimera capitula.
 
Veio o inverno e, com ele, o frio eterno. Congelou-se o lago, cristalizou-se o reflexo, petrificou-se a vida. Presa ficou a pepita na neve, o ouro já sem valor, impedido de brilhar.
 
O olhar continua risonho, mas um pesadelo vê-lo agora, lembrando-lhe aquelas águas que gostaria de esquecer. Aquelas águas sobre as quais pisa, pula, dança, águas que golpeia com violência e, também, receio, à espera de que se quebrem as placas de gelo, restabeleça-se o lago na planície branca.
 
Águas nas quais, decerto, a trança desmancharia já no primeiro mergulho, o que pouco importaria, a segunda medula já não seria feita de cabelos nem de vértebras, seria um sol capaz de muito mais luz e calor que este que conhecemos.