terça-feira, 24 de maio de 2016

Devia

 
Todo mundo devia ter direito a começar seu dia brindado com um pequeno prazer. Poderia ser cheiro de café, canto de pássaro, face querida, surpresa boa, como lembrar algo importante que dormira esquecido.
 
Coisas até mais simples: a pele texturizada no cobertor, o ar entrando pelos pulmões, as primeiras espreguiçadas do corpo revigorado, o frescor da pasta de dente. Mesmo a água fria da torneira, que, afinal, é água, é choque, é vida.
 
Direito, também, a começar seu dia brincando, acreditando, despertando livremente da noite de seus sonhos para ir colher outros à luz do sol. De barriga cheia e pés aquecidos, olhos abertos e esperançosos, carinho no rosto e coração enternecido.
 
Todo mundo devia, ainda que só nas linhas de uma boba fantasia.
 

terça-feira, 17 de maio de 2016

Oculto


Renuncia-se a uma palavra, a um gesto, a um impulso. A um sentimento embrionário que, vai saber, poderia virar tudo, ser a própria identidade espelhada nos olhos de alguém.

Renuncia-se não à toa: por fraqueza, às vezes, mais que por força; pela grandeza de horizontes mais fundos que aqueles que a vista presente alcança; pela paz, pela intuição de evitar conflitos cujo saldo pode ser muito mais terrível que a perda daquilo a que se abdica.

Mais que a falta objetiva, que a saudade adivinhada, o ato de uma renúncia tende a ser duplo: por si e, especialmente, pela ciência triste de que ele não será visto, não será reconhecido. Ficará nos subterrâneos, como o esgoto e a água. Ficará oculto, como as raízes.

Faz parte do seu show. Não poderia ser diferente. Desejá-lo seria invalidar a própria essência da renúncia. E bem sabem as almas sensíveis, tão diferentes da minha, quanto se perde com os atentados à essência, tão corriqueiros quanto letais.

Assino Oculto, como as já ditas raízes, que se escondem para que as flores, merecidamente, brilhem.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Burocrática


Vez por outra a gente recebe uma nota de falecimento por e-mails institucionais. Na grande parte dos casos, não conhecemos as pessoas que faleceram. Docentes aposentados, o pai de um funcionário de outro departamento, no qual sequer pisamos, alguém que ocupou um cargo já caduco na lógica administrativa.

A gente olha os dados biográficos, sumários como nada que pareça com a vida. Endereço do funeral, condolências automáticas nas palavras de pesar. A morte em sua face mais fria, que é a face burocrática.

A gente apaga o e-mail, para não obstruir a caixa de entrada. Com um clique, esquece o que já foi esquecido pelo ciclo natural da fisiologia. Nada há de cruel neste ato, é verdade. Quantas pessoas não morrem todos os dias? Quantos, talvez, que nenhuma chance tiveram no decurso de sua existência, que não sorveram sabores vários, que tiveram seus sonhos mais simples vetados pela necessidade de acordar cedo? Quantos, possivelmente, que não chegaram perto da plenitude e da felicidade daquele cujo finamento acaba de se nos comunicar?

Nada há de cruel, repete-se. Se todo sofrimento humano açoitasse a pele dos indivíduos da espécie, pereceríamos no primeiro ar. Não daríamos um passo, não articularíamos um som.

Nada cruel, sublinha-se.

Por que, então, esta amarga sensação?