terça-feira, 26 de maio de 2015

Trastes


Há alguns anos, encontrava-me em pé, em um ônibus razoavelmente cheio na Av. Doutor Arnaldo, quando entrou um senhor de calções e camiseta. Tinha porte atlético, aparentava idade entre 70 e 75 anos e carregava uma pequena sacola nas mãos.
 
Uma moça jovem, observando a norma de preferência de assento a cidadãos idosos, ofereceu-lhe o lugar. Sorridente, o experiente esportista agradeceu-lhe a gentileza, mas disse que não precisava, estava bem como estava.
 
Se eu tivesse celular com câmera e tirasse uma foto naquele instante, compartilhando-a, a seguir, nas redes sociais, possivelmente causaria revolta e comoção. O senhor seria tratado como vítima do egoísmo, da rapinagem, do oportunismo dos passageiros mais jovens, ao ser deixado em pé, suscetível a uma queda pelos trancos do veículo; a moça, como vilã tipicamente brasileira, que pretende tirar vantagem de tudo; a sociedade, como deficiente de moral cidadã. Muita gente, de diferentes tendências políticas (o que é ainda mais grave!), depressa encarnaria o papel de justiceiro, dispondo de incrível criatividade e energia para logo descobrir (e publicar) o CPF e endereço da menina.
 
Assim, de uma bela cena de cortesia entre duas pessoas anônimas que se encontram, circunstancialmente, no transporte público, teríamos, como resultado, ira biliosa, troca chocante de ofensas e acusações, invocação de palavras de ordem, slogans sectários, poderes militares, luta de classes. Além, claro, da possibilidade concreta de um desses justiceiros resolver levar às últimas consequências sua sede de virtude cívica, seja por ameaças verbais, seja pela violenta efetivação das mesmas.
 
Tudo por causa de uma foto. De um clique instantâneo. De um registro que, sem os devidos cuidados artísticos ou profissionais, recorta a vida, anula o contexto, elimina os contrastes em favor dos trastes da neurose tecnológica.