segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Viver


Outro dia, referindo-se a um período recreativo prestes a ter início, escutei uma pessoa dizer: "saindo para ir viver!".

Na hora, até achei curioso, ameacei gostar. Um pouco mais tarde, a frase voltou e comecei a ficar com um sentimento esquisito em relação a ela. Como assim vai viver? Foi quando me dei conta de que é um pensamento corrente, este de acreditar que viver, ou ir viver, equivale exclusivamente aos períodos de exceção, como os píncaros hormonais, os dias abertos, a vista desimpedida, a satisfação imediata de prazeres.

Claro que, no agregado das lembranças e anseios, na preferência da razão, eles formam os melhores quadros. Evidente que nos dão o estímulo necessário para suportar as agruras da rotina, oferecendo uma perspectiva de lazer e bem-estar sem a qual seria menos verossímil aceitar determinadas condições de sociedade e existência. O que não significa, em absoluto, que seu contrário seja ir morrer.

Uma praia é deliciosa, mas pisar na calçada quente, tropeçar em suas irregularidades, pisar nos dejetos recém-acumulados, também é viver; sombra e água fresca descansam a alma, mas tapar os ouvidos quando a britadeira liga também é viver; uma paixão desperta o corpo, expande os sabores, mas as dores também são viver. Como também é vida o escritório abafado, a chuva que se arrasta, o vidro espatifado, os fios que arranham o céu; vida, as palavras que cravam lanças, os silêncios que as torcem contra as vísceras, as bolachas murchas na lata; vida, a falta do que pensar, sentir, falar, fazer; vida, o que ninguém, em sã consciência, gostaria que acontecesse.

Se puder pensar em um desejo para 2014, entre tantos que, felizmente, povoam-me a imaginação, peço que meus olhos enxerguem, cada qual, uma dessas facetas. Que eles me concedam a incrível bênção de ser grato por cada vez que encontrar uma pessoa querida, sentar-me diante de uma mesa farta, aspirar o perfume do lençol que me cobre, pisar numa quadra, mergulhar numa piscina, inscrever a data presente ao final de um texto. Que me permitam compreender que, lado a lado com os prazeres, estão os sacrifícios – meus e, sobretudo, de muita gente. Que me alertem constantemente que, sem que se valorizem esses mesmos sacrifícios, os prazeres não têm medida, não sabem quem são ou a que servem.

Que não me percam de vista o fato de que, nos piores cenários, conforta e basta o fato não de que se vai viver, mas de que, milagrosamente, ainda se vive.

Bem vindo, ano novo!

Allan

30/12/2013

Para Margareth, Luna e Manuella