segunda-feira, 25 de abril de 2016

Redação

 
Uma vez, na aula de italiano, precisei descrever como era o lugar dos meus sonhos.
 
Modéstia à parte, fiz um bom trabalho para quem estava começando a aprender. Caracterizações bem trançadas, um final decente e razoavelmente poético, dentro das possibilidades.
 
Não entreguei, porém, a redação. Até hoje está devidamente guardada, recordação que é de um tempo no qual eu acreditava naquelas palavras.
 
Minha pergunta, hoje, é outra. Como são os sonhos do meu lugar? Quais as chances de se realizarem? Qual a importância de se realizarem, se intactos e puros no carrossel da hipnose?
 
Precisaria de muito papel para esta redação. Ao mesmo tempo, de quase nenhum. De meia dúzia de nomes próprios que levam o oceano a meus olhos e fazem que eles vejam o infinito. De uma conversa simples em uma mesa simples ao redor da qual nada precise acontecer. De um sorriso que é metáfora, pleonasmo e superlativo da felicidade.
 
De saudades afagadas pela intensa vitalidade do amor que as sucedeu.
 

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Desimportante


Um professor da faculdade apresentava, no telão, as pérolas produzidas pelos alunos em suas provas. Transformava, assim, a tensão da divulgação das notas em um momento descontraído.

Uma vez, julgando encontrar um erro gramatical evidente, sublinhou, como uma dessas pérolas, a palavra "desimportante", utilizada por desavisado estudante em uma de suas respostas. Na época, não sabia que a palavra existia, de modo que, apesar de desconfiado, acreditei que, de fato, algum erro havia-se cometido.

Uma pulga atrás da orelha, porém, levou-me, anos mais tarde, a sanar a dúvida. Sim, a palavra "desimportante" consta nos dicionários. É um pouco feia, soa mal, mas existe. Apenas não é utilizada com frequência. Seja quem for o autor da pérola, pois, fique redimido: você não estava equivocado(a).

O que a pulga não me contou (nem o faria, por bioquímica lealdade) é que o sangue que ela haveria de extrair de meu pobre lóbulo era também desimportante. Que, tão depressa eu decifrasse esse enigma sem esfinge, perceberia que a palavra feia, a palavra torta, a palavra da qual, com razão, todos riram na sala de aula, era aquela que mais bem se ajustava ao rastro que eu ia deixando. Pegadas desimportantes, marcos desimportantes, metas desimportantes. Lágrimas, pontadas, receios, contenções, cabimentos desimportantes. A própria desimportância desimportante, parada como um rio podre, banal como um bolo de supermercado, em seu completo alheamento; paliada por canções dulcíssimas, por ideias geniais, por números impossíveis que, confortando-a, mais a corroboram, em sua ânsia de expressar o que não há, o que não é.

Constatar-se desimportante; perceber que todos os signos, todas as memórias, tudo de mais sagrado que plantamos, colhemos e cuidamos pode nada significar; intuir, ainda que por um instante, que, no revolver das gavetas, o afã será por esvaziá-las, não conhecê-las; descobrir que ninguém quer seus brinquedos velhos, seus livros amarelos, suas palavras sem pilha, é algo com que não se sabe lidar. Com que a mais serena têmpera deixa-se perturbar. O maior baque, talvez, da existência da alma.

Daí, pois, a importância de reconhecer. De mostrar. De falar. De brigar, até, se linguagem mais branda não souber manejar. Reconhecer, mostrar, falar o quê? Qualquer coisa. Tudo. Quanto quiser. O mais simples detalhe, a  mais despretensiosa observação. A indiferença inerente à condição vital só é superada em crueldade pela indiferença que se impinge voluntariamente ao semelhante, como ato de rancor ou expressão displicente de desdém.

Em palavras mais cruas: mande-me à merda, mas não me deixe aqui no porto, acenando o lenço gasto aos fantasmas do naufrágio.
 

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Isso

 
Vivo simplesmente. Poucos artifícios. Como o que há no prato, respiro o ar que me vem, respondo a quem me pergunta. Mil defeitos ostento, outros mil oculto, vultos, no impenetrável núcleo das selvas intestinas. Entre feras e ribanceiras, dois mil, portanto: nenhum, no entanto, que me reflita como não sou.
 
Sou isso. Em constante mudança, em desejável mudança. Por mim, pelos que me amam, pelas circunstâncias. Nada mais tolo que não mudar. Nada mais egoísta que se declarar impassível de modificações, como se gostar fosse um ato unilateral e incondicional de confirmação.
 
Com toda a mudança, ainda assim, sou isso. Continuo isso. Nem mais nem menos. Não digo o que não sinto, não procuro o que não me toca, não me aproximo do que não quero perto, não me arrependo do que me encanta. O que pareço aos olhos dos outros, não sei. Desejo, de coração, que o melhor, o mais verdadeiro em relação àquilo que penso de minhas próprias escolhas. Não posso, porém, controlar. Não quereria controlar. Não me compete. Apenas reitero: não digo o que não sinto, não procuro o que não me toca. Se falo que é bonito, é porque vejo beleza. Se escrevo que sinto falta, é porque tenho saudade. Pouco valor tem meu juízo de caráter, meu fascínio, meu sentimento, tudo isso é verdade. Muita gente enxerga melhor, mais nítido e longe que eu, com meu grau e meio de miopia. Mas meu olhar é meu olhar, e ele não sabe mentir. 
 
Ele vê que há os que pedem sinceridade, mas não a aguentam. Os que clamam por demonstrações de amor, mas logo se entendiam. Os que almejam ser compreendidos, em vez de julgados, mas depressa acusam a falta do aguilhão da clava alheia. Tão flagrantes contradições, que não haveria linha para fiar tanto tecido.
 
Eu não peço nada. Não clamo nada. Não almejo mais que um filete de água que desafie a impostura da ravina. Mas reconheço que é uma opção lógica. Pode mesmo se tornar um bom negócio nos balcões propícios. Lucrativo e piedoso, dependendo das cartas lançadas. Não para mim. Com todo o respeito de quem nada postula, com toda a pompa de quem tudo teme, o jogo das aparências não me interessa. É possível ser polido, diplomático, gentil e respeitoso sem dele participar. Mais que possível: é desejável; é cristalino; é urgente.
 
E digo o porquê: prefiro ser bobo a ser falso; ingênuo a esperto; iludido a ilusionista. Pois a ilusão, que às vezes fere; que às vezes caçoa, no espelho, da nossa cara de tacho; que às vezes magoa como jamais deveria magoar-se um ser humano... A ilusão vale mais, muito mais que a presunçosa, efêmera glória de dominar um truque.