sexta-feira, 20 de julho de 2018

Dedos


Uma falha, um erro, todos são processos normalmente longos, magoados, doloridos.

Espanta como, em cada fase desses processos, rara é a mão que se estende ou o olhar que se aproxima. Espanta mais como, concretizada a falha, exposta a fraqueza, sobram dedos que apontam, apertam o machucado, indicam o que devia ter sido feito.

Onde estavam durante o caminho? Se tão sábios e tão enérgicos, por que não impediram os acontecimentos quando estes ainda não o eram? Por que não escreveram uma carta? 

Por que, impotentes para mudar o curso, não ficaram, ao menos, e fizeram companhia?

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Horas


Há horas gentis no relógio, horas que se dedicam e escutam, horas sinceras e profundas, horas que até amam e cuidam de cada segundo, comprometidas com o tempo que pontuam.

Estão ali, entre os ponteiros, como as luas e os planetas, girando.

Por vezes, ficam tontas e são empurradas, espezinhadas, omitidas dos créditos, deixadas de lado. E, no entanto, sempre pedidas, nos discursos emocionados, nas filosofias de boteco, nas utopias de vitrine. 

Horas heroicas, existam apesar dos trancos, das bombas impostoras que lhes roubam os tique-taques! Permaneçam quando tudo mais, volúvel polaridade, relampejar nas nuvens açodadas.

Sejam a esperança latente de cada novo dia!

sábado, 14 de julho de 2018

Raias


Talvez eu tenha chegado tarde, atrasado como sempre, correndo sobre a esteira das estéreis ilusões.

Talvez, ao revés, tenha chegado cedo demais, precipitado como as chuvas, os raios, as descargas adrenérgicas que nos fazem correr e lutar, debater-nos contra os fatos à deriva.

Talvez nada que ver com o tempo, com a ascensão e queda das grandes potências pineais. Um vale, vento, galhos, cores impossíveis preenchendo o que deveriam ser contornos de um crepúsculo ideal.

Talvez, raias paralelas, as águas não se encontrem.

Talvez, por sobre, nadem, remem, sobrevivam.

Vivam.

Quem saberia?


segunda-feira, 9 de julho de 2018

Cobranças


Sempre é uma palavra traiçoeira, porque impossível de garantir. Uso-a, todavia, como licença poética, para dizer que sempre me senti cobrado a manter os pés na realidade. Uma cobrança sem rosto, sem nome, confusa como os vultos que se esgueiram nas zonas fronteiriças entre a espera e a ação.

Sempre, também, me rebelei contra tal ordem, embora, de rebelde, tenha, quando muito, o cabelo quando acordo. Insurjo-me porque, na profundeza das horas sozinhas, as poucas horas verdadeiramente minhas, sei que a minha melhor versão, a versão em que me salvo, é a versão do que imagino. A versão na qual não preciso, absolutamente, preocupar-me com as restrições, porque tudo posso superar: meus medos, meus modos, minhas manias entrincheiradas, a propensão a crer que não vale a pena ou já passou o tempo.

É um viver irreal, admito, mas longe de falso e perto de pleno. Um sonho manco, quem sabe, mas, ainda assim, desejo movente. Força que abre caminho.

Nele, as noites são longas, os dias têm música, as mais francas fragilidades de uma alma desorientada desabrocham como os botões de opulenta primavera. De uma estação que começa, termina, renova, surpreende e deixa saudade, mas também rastro, álbuns, fotografias nas quais se reconhece o lustro de uma época especial, a que se pretende, lá na frente, por estranha e magistral contradição, regressar.

Nele, planícies alagadas vêm à tona e esclarecem o mapa dos geologistas, dando rumo à história sem sentido das camadas do terreno.

Nele, os dramas são suaves, dissolvem-se no vinho, na dança, na chama de olhares que se chamam e se somam, mesmo quando nunca mais se vejam.

Nele, mesmo os mais severos desentendimentos compreendem que ainda há tempo, ainda é tempo, loiros, negros, ruivos ou castanhos, os fios todos acabam brancos, as mãos enrugadas, e ao se encontrarem, já não importam cor e textura, a carícia não envelhece, o carinho é o ato mais próximo da eternidade, antídoto das cobranças, parâmetro das danças que os pés, ancorados na realidade ou nos cometas, arriscam quando ninguém está olhando.

Nele, não se pergunta como, mas quando.

Quando?

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Passou


Não era costume alguém parar assim, no meio da ponte. A gente em trânsito reclamava, a calçada era estreita, atrapalhava o fluxo.

– Que fluxo para mim? – caberia protestar ao homem das muletas, que não podia andar senão em lenta marcha, com esforço duplo de dor e equilíbrio. Mas não, o homem das muletas não protestava, o homem das muletas só se preocupava com o sol se pondo, com o rio de ouro no lugar do rio pútrido, a se arrastar lá embaixo, como se cruzasse selvas mitológicas.

Nem ligava para o cheiro que emanava das águas infectas, para o barulho sem fim dos carros e seus vômitos monocarbônicos, para a histeria da política e do futebol. Só o que via era a trivialidade do crepúsculo, da cena que se repete, diariamente, desde que a estrela é estrela e o homem é homem.

Mas ele não era qualquer homem, era o homem das muletas, o homem que poderia se jogar da ponte ou oferecer biribinhas aos transeuntes, que o interesse provocado seria o mesmo, as pessoas passariam, o rio passaria, a tarde passaria, eu passaria.

E passei.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Boas vidas


Eu estava de carona no carro e havia colegas no ponto de ônibus. Ela dirigia e, avistando-os, perguntou-me se não convinha parar e pegá-los.

– Melhor, né?

Dizer que me agradou a ideia seria mentira das graúdas. Como não minto, ao menos não nestas verdades fúteis de relatório, confirmo que achei péssima a iminência de dividir o veículo e, com ele, a companhia. Melhor o cacete! Mais gente pra quê?

Pouco podia, no entanto, contra a decisão. Não tanto por não ser dono do carro, nem pelo caráter retórico da pergunta. Antes pela nulidade que, hoje percebo, era eu na época, especialmente para ela, para os colegas do ponto, para as autoridades acadêmicas e o caminho que, casualmente, dividíamos, empoeirados.

Para não ficar sem dizer palavra, como um espantalho de vocálicas paragens, lembrei-lhe, logo após ela buzinar aos amigos, que bem se poderia reproduzir uma cena típica de comédia italiana. Acabara de ver algo igual no filme "Os boas vidas", com Alberto Sordi: dois tipos acenavam para os trabalhadores cansados, que esperavam a condução; fingiam encostar a "macchina", a fim de lhes prover carona; arrancavam a toda velocidade, dando uma banana aos iludidos operários, que espumavam de raiva com o truque pregado.

Lembrei-lhe e, antes, houvesse esquecido, visto que sua reação infligiu-me uma das mais profundas revelações de solidão que jamais viria a conhecer em vida. Não apenas o sentido humorístico da cena do filme, que eu me esforçava em realçar, não foi compreendido, como, olhando-me como a um alienígena, ela me fez perceber que eu não tinha a menor chance de me aproximar, dela ou de qualquer terráqueo, enquanto visse graça em antigos filmes italianos.

Embora morasse mais perto do ponto de ônibus que todos os amigos caroneiros, fui o último a ser entregue em casa, aquele dia. Apesar disso, ou por causa disso, praticamente nada mais disse em todo o caminho, exceto nos minutos finais da imensa volta que demos pelo bairro universitário, quando o carro já se encontrava na avenida em cuja esquina se encontrava meu pequeno apartamento. Devo ter dito palavras banais, o que me era altamente custoso, aliás, uma vez que nada havia de banal em estar com ela, em projetar sua companhia por dias e noites a fio, como então o fazia, dias e noites que seriam tudo, menos banais.

Não faço ideia se meu abatimento ficou patente, se me esforcei ou não para contê-lo em frente às outras pessoas que estavam no carro, se ele seria minimamente entendido, na época ou hoje, pelos colegas e por ela. Não faço ideia se a revelação de solidão de que falei era um destino, uma flecha, uma piada.

Sei que, por linhas tortas, conheci-me melhor aquela tarde. E, embora uma voz irritante diga que mudei irremediavelmente naqueles três, quatro quilômetros percorridos, por ter sentido na pele a distância entre o ideal e a realidade, continuo, uma década depois, vendo meus filmes, rindo de suas cenas, conquanto, não raras vezes, o motor do carro falhe e este Alberto Sordi aqui se estrepe, sua brincadeira de fuga virando um pega-pra-capar.

domingo, 1 de julho de 2018

Viagem


Ontem não conseguia dormir. Havia voltado no tempo e o fuso horário da viagem atormentara-me o sono.

Passeei por horas que quase não existiam mais. Impressionou-me o fato de as mesmas folhas pairando no ar, como berços que balouçassem, de um lado a outro, a embalar ventos futuros. Impressionou-me ainda mais o mesmo ritmo fascinado em que batia meu coração, diante das delícias e compunções da incerteza, visto ter esta envelhecido tanto quanto eu, que agora sei que o manto era bem maior que o mistério que nele se ocultava.

Em dado ponto da jornada, perguntei-me, com sinceridade e uma pitada de desespero, por que a continuo fazendo. Entrar na máquina, ajustar a data, percorrer as rotas, tudo é angustiadamente opcional.

Encontrar-me com a poeira de que sou feito, a poeira que sobe da estrada por que vim, não. E é por ela que puxo o ar, apesar da seca poluição. Por migalhas de seu puro aroma é que rodo a chave na ignição e, atravessando o perigo dos mares, reconheço-me no balanço das ondas.

Elas assustam, devem assustar, como toda turbulência. Anômalo é o corpo que não pula à trovoada, os olhos que não piscam no instável relampejar.

Assustam, não paralisam. Não dissipam. Não esquecem.

E aquele que fui cumprimenta o que não fui, para que juntos, de mãos dadas, aprendamos algo nestes cifrados diários de viagens e possamos ser.