sexta-feira, 9 de março de 2012

Era uma vez uma mulher


Mulheres são mesmo criaturas especiais. Afinal, foi uma quem trouxe ao mundo o ente perfeito, excepcionalmente lindo e maravilhoso que sou.

Brincadeiras à parte, conto-lhes uma história, lavrada na carne incorrupta do olho mágico que a amplificou.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Desde que soube que me carregava no ventre, abrigando-me da perfídia reinante lá fora, foi feliz. Uma felicidade gratuita. Felicidade, no entanto, que a preço nenhum venderia, pois preço nenhum saberia compensar. Felicidade que fez óbices intransponíveis reduzirem-se a poeira. Felicidade de roseira pela rosa, de poema pela prosa, de algema pela asa, de instante pelas eras. Felicidade que, mais tarde, em cada célula vibrante gravaria a sua marquinha, terna, tênue, inconfundível, ícone vivo do amor maior. Felicidade que a qualquer dor, qualquer grito, qualquer soluço, sempre volta. Felicidade que segura a minha mão e me abraça, para não doerem tanto as vacinas que a vida me espeta.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Órfã pela vida, não pela morte, desafiou as convenções da sociedade patriarcal e, aos treze anos, foi trabalhar em casa alheia, como empregada doméstica. Mais tarde, Deus me livre, virou telefonista, falava com tudo que era gente, um escândalo! Mais tarde conheceu Dauro, casou, teve filhas. Mais tarde aposentou-se. Às vezes gritava comigo e com meu irmão, pelo barulho que fazíamos. Às vezes deixava que eu batesse no bife com o martelo. Às vezes, quando um carro da polícia despontava na esquina, falava que vinha descendo a rádio-patrulha. Às vezes acho que tínhamos a mesma idade.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Ela acabou de dar à luz uma menina, que é como uma lua-guia na mata escura. Como tudo o que é novo e é primeiro, aquele pedacinho chorão de vida a assusta enormemente. Faz que ela se sinta mais perdida e insegura que na época em que era adolescente. Desperta questões que livro nenhum ensina a responder. Quando eu era pequeno, lembro que ela cuidava com carinho de mim. Cortava-me as unhas, penteava-me o cabelo, jogava videogame. Do meu irmão, então, cuidava com ainda mais zelo, ainda mais jeito, tão bebê ele era. Hoje a vejo com a lua-guia nos braços e penso naqueles tempos. Em como tudo o que aconteceu, teve, sim, os seus propósitos. Em como, embalada em berço de amor, sua criança dorme tranqüila, cresce tudo o que tem de crescer, aprende e apreende os sentidos. Descobre, na medida certa, a imensidão do que a cerca, e assim pode sonhar em paz.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. E que até fica engraçada quando chamada de mulher, pois quando a conheci era apenas uma menina. Uma menina em quem bati os olhos e depressa compreendi a luz que me instigaria. Uma menina com quem poucas, pouquíssimas palavras troquei, mas como se a conhecera de outros planos, outras galáxias, tantas vezes tagarelamos em sonhos que, hoje, também parecem pairar em outros planos, soprar de outros ventos. Uma menina que nem sei mais onde mora, a quem ora, por quem chora.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Foi nela que eu dei meu primeiro beijo - tão esquisito, tão espavorido, tão geometricamente implausível, que ósculo, não beijo. Nela dei também meu segundo beijo - aí, sim, beijo, com todas as letras e línguas, dono de cada torção e rodopio, quente e frio ao mesmo tempo.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Minha primeira dose real de romantismo, também meu primeiro porre, minha primeira ressaca, minha primeira dança, minha primeira jura de vingança.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Quando a tarde caía e o verde das montanhas ia tingindo as águas do mar, ela aparecia, como uma sereia. Em vez de cantar e capturar-me em seus ardis encantadores, seduzia-me de outro modo: deitava-se do meu lado, como uma estrela deita-se no céu, sem dizer uma palavra. E aí passava o rapaz vendendo sorvete, e as crianças corriam atrás dele, e um cachorro corria atrás também, interessado no movimento. E um surfista caminhava em direção às ondas, prancha na mão, enquanto sua namorada procurava na cesta o sortilégio do dia. E uma bola sem gomos corria, um brilho fugaz desprendia-se da ilha fronteira, uma gaivota mergulhava o bico profundo no manto plácido. E Deus aparecia da rua, gorducho, contente, metido no uniforme suado, pedia uma cerveja no quiosque do Cazuza, aprovava tudo com um meneio de cabeça. E você virava de repente e parecia espantada, tem alguma coisa errada acontecendo, eu dizia não tem, agora está tudo certo, agora está tudo no lugar, e você acreditava, era eu, afinal, quem estava dizendo. E você me empurrava no precipício e a seguir me abraçava, para ver que não tinha o que temer. E você sorria, e cada músculo da face sorria também, compunha o rosto levado e bonito que me cativara, que era levado e bonito mesmo quando invocado com a algazarra dos anjos. E nos teletransportávamos para lá do cortejo funerário da bezerra, para além do reino dos selenitas, como dois bicões no espaço sideral, filando o creme dos anéis de Saturno. E eu descobria então por que órbitas você anda atualmente, o que achou do presente e da carta, o que pensava de mim antes de a maré subir e desmanchar o que era para ser uma surpresa.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Corpo sadio e alma bendita que, um dia, dar-me-ão o gosto, honra e completude de uma existência em comunhão, até que vida ou morte nos separe. Matéria e espírito que se unam aos meus e se absolvam e aperfeiçoem em novas matérias e novos espíritos, até os últimos artistas da espécie. Amor mais perpétuo que um voto, mais legítimo que um contrato, mais inoxidável que uma aliança de ouro.

Era uma vez uma mulher, filha de outra mulher, filha, por sua vez, de outra mulher, direta descendente da primeira artista da espécie. Houve um tempo em que eu não sabia mais se era para felicitá-la ou para me calar nos 8 de março, tal a contundência das reprovações. Algumas bradavam: como foi se esquecer de me chamar para o bolo? Outras vociferavam: não sabe que um dia solitário de homenagens no ano é ainda mais machista que sua falta no calendário? Todo dia é nosso dia! Outras, ainda, lembravam: é simbólico, menino, é tudo simbólico.

Como houve um tempo em que não havia estes símbolos e esta consciência, e um tempo em que ainda não há esta consciência, e um tempo infeliz em que nunca haverá, e um tempo mais infeliz em que tentam inverter o mecanismo ao invés de destruí-lo. E um tempo de mármore sobre as contendas, dúvidas e clichês, e um tempo mágico em que os símbolos serão compreendidos e as nuances, consideradas, e um tempo e um templo em que nada disso terá mais importância, para mim e para todos, pois a pauta estará superada.

08/03/2012

2 comentários:

Fred disse...

Allan, sem palavras. Começar o dia com tal profundidade poética certamente já é consertar todos os probleminhas que, por ventura, venham ao longo dele. Parabéns e obrigado por tê-lo escrito.
Abrs,
Fred

Rê! disse...

Lindo, lindo, lindo!! Obrigada por compartilhar conosco esse texto tão lindamente escrito. Uma linda homenagem(se é que posso chamá-la assim) às mulheres. Obrigada mais uma vez! Beijos!!