terça-feira, 4 de novembro de 2008

Pérola


"De repente abre-se uma janelinha inesperada numa alma, a gente espia para dentro, mesmo sem querer, e o que vê nos surpreende, dando-nos uma visão diferente desse ser. Como se pode 'julgar' (verbo paranóico que deve ser substituído por 'compreender', mais cristão) um homem só pela fachada da 'casa de seu ser', ou pelas palavras que ele pronuncia na língua cotidiana e imperfeita dos homens? Lembrei-me de que um velho tropeiro um dia me disse: Olhe, moço, ninguém é o que parece. Nem Deus."


Érico Veríssimo - Incidente em Antares, Parte 2, cap. LXXX


Deparando-me, outro dia, com este maravilhoso fragmento da referida obra de Érico Veríssimo, desatei a refletir sobre como, a certo ponto, nos tornamos mesmo vítimas deste hábito pernicioso de rotular as pessoas que nos cercam. Quantas vezes já não nos pegamos traçando conjecturas depreciativas sobre a personalidade deste ou daquele indivíduo unicamente por uma opinião porventura discordante da nossa, ou então por seus trajes, seus trejeitos, seu corte de cabelo, sua risada alta, baixa, muda, em saraivadas, etc.? Quantas vezes não chegamos ao ponto de julgar, no sentido literal da palavra, uma pessoa que mal conhecemos, em função de um momento, uma impressão, um comentário alheio sussurrado em nossos ouvidos? Quantas vezes não lhe imputamos culpas, condutas, pecados originais, marcas de nascença. Sentenças...?

Evidentemente, não se deve negar a força da chamada primeira impressão, que age nas fundações oníricas da nossa intuição, ajudando-nos - muito certeiramente, às vezes - a direcionar o leme da nau neste mar revolto que é a vida. Todavia, chega a ser chocante nossa susceptibilidade à aceitação e, por que não dizer, fabricação dos muitos estereótipos que, posteriormente, vêm dar contorno às diferentes manifestações de preconceito e discriminação. Chocante e, do ponto de vista do indivíduo, do particular, algo simplesmente desastroso, no sentido de nos privar, eventualmente, do convívio e da sabedoria de alguém com muito a dizer e partilhar de seu.

Ninguém é o que parece porque todo mundo, no fundo, esforça-se para adaptar sua essência, sua identidade única e indivisível, a uma imagem que se revele palatável, por assim dizer, à sociedade. Mesmo os mais excêntricos, que gritam através do comportamento alternativo um brado de libertação a nossa sociedade-cárcere, agarram-se ao exotismo de seu comportamento como forma de justificar ao mundo sua suposta inapetência para o jogo das aparências. Exatamente como os tímidos, que, nas palavras de um autor que agora me foge o nome, são os maiores egocêntricos que existem, por imaginar que todos os olhos estão a todo momento voltados para eles.

Escapar a esta tentação do rótulo consiste em tarefa nada fácil. Impossível, em alguns casos, por se tratar de um traço central do caráter humano. Atenuá-la, no entanto, não somente é possível como desejável. Quem de nós, afinal, nunca se surpreendeu com o "outro" que conhecemos depois de uma conversa mais franca? Depois de vivenciar em cumplicidade uma situação de maior delicadeza? Depois de se permitir conhecer e de permitir, a si mesmo, imergir sem medo na imensidão escondida dentro deste "outro"? Até como auto-crítica, afirmo que isto me aconteceu muitas vezes e deveria ter acontecido muitas outras mais.

Afinal, se existe, de fato, uma pérola em cada um de nós, ela só valerá alguma coisa quando revelada ao mundo. Nem que este mundo seja apenas (apenas?) as pessoas que nos cercam, que nos amam, que amamos e que, por algum motivo misterioso, mas forte demais, desejamos desesperadamente amar...

04/11/08

Um comentário:

Anônimo disse...

"Ninguém é o que parece porque todo mundo, no fundo, esforça-se para adaptar sua essência, sua identidade única e indivisível, a uma imagem que se revele palatável, por assim dizer, à sociedade."

Acertou em cheio. Conseguiu colocar em palavras exatamente o que penso!
Por uma questão de sobrevivência pura, fui obrigada a modificar e deixar para trás, alguns valores que prezava muito em minha personalidade.

Eu já conheço a pérola que existe em você. Está mais que na hora de mostrá-la ao mundo, não é?
Beijos.
Margareth