Parecer da Secretaria de Assuntos Estratégicos
indicou recentemente que, de acordo com os novos critérios de análise adotados,
54% da população brasileira pertence à chamada classe média.
Segundo projeções do IBGE, a população do estado
de São Paulo atingiu, em 2012, 41,9 milhões de habitantes.
Uma conta simples, despretensiosa ao extremo,
converge para
22.626.000 corpos.
22.626.000 cérebros.
22.626.000 línguas que dizem o que lhes der na telha,
pois, até se prove o contrário, e apesar dos últimos pesares, estamos em uma
democracia.
22.626.000 insondáveis circuitos neuronais, cada
qual exposto a uma combinação de impulsos e estímulos necessariamente única,
exclusiva, inimitável.
Isto posto, que me desculpem: nada pode haver de
mais conservador, de mais insidioso, de mais retrógrado e pusilânime, que se
pretender o emparedamento de universo assim plural. Nada pode haver de mais
emblemático que tamanha aberração emanar das salas de aula da maior
universidade da América Latina, onde número preocupante de estudantes repete em
coro, como bons soldados (ou papagaios): "espírito crítico! Espírito
crítico! Espírito crítico!".
Passa da hora de nos perguntarmos: que raios de
espírito crítico é este, que se presta às versões mais mesquinhas de
sectarismo? Que raios de espírito crítico é este, que só enxerga e denuncia o
que lhe convém? Que raios de espírito crítico é este, que se vale dos mesmos
nefandos rótulos contra os quais deveria se insurgir? Que raios de espírito
crítico é este, que se deixa manobrar com a facilidade de um carrinho de
bate-bate?
Como passa da hora de nos perguntarmos: que raios
de progressismo é este, que rotula e desqualifica seus adversários com a sanha
doentia dos melhores totalitarismos? Que raios de progressistas são estes, que
confundem ciência com ideologia, cultura com partido, filosofia com
doutrinação? Que raios de progressistas são estes, que deram de sair por aí com
o martelo da moral em riste, distribuindo veredictos míopes e estigmatizando
quem não os acata? Que raios de progressistas são estes, a tal ponto
preconceituosos, que se permitem a audácia de tomar 22,6 milhões de almas e
jogá-las no esgoto, como criaturas abjetas, inferiores?
Fora das categorias puramente formais da
investigação demográfica, classe média paulista é uma ficção, e de péssima
qualidade. A realidade concreta do estado de São Paulo, talvez intangível para
esses etiquetadores compulsivos (e, lógico, representantes máximos do espírito
crítico nacional), é a de homens e mulheres que trabalham, pagam impostos,
suam, sofrem, surfam e se ferram no asfalto comum. Seres humanos das mais
variadas compleições físicas e origens geográficas, que forjam seus valores não
no delírio de uma categoria artificialmente imposta por pseudorrevolucionários,
mas na luta diária pela sobrevivência. Gente tão sortida, de tão escassos
recursos e em tão diferentes posições, que, não raro, vê-se obrigada a competir
entre si por essa sobrevivência. Pessoas que talvez não atinjam a sofisticação
intelectual dos progressistas da USP (que não leem a revista Veja, porém se
esbaldam em publicações de verniz mais fresco, lotadas de publicidade oficial),
mas, ainda assim, pessoas, de carne e osso, com os mesmos direitos e deveres
das iluminadas mentes que as culpam pelo atraso do país. Comprimir, ou melhor,
pretender comprimir tamanha variedade numa expressão deliberadamente
discriminatória não constitui apenas mero equívoco de discernimento.
Trata-se de autoritarismo descarado. Obscurantismo em estado puro. Ameaça iminente à
liberdade. Policiamento ostensivo do direito à diversidade. Além, claro, de
afronta sem par à inteligência.
É muito fácil destrinchar tanto os vícios como os
interesses por trás desta necedade discursiva. Quem olha para a sociedade
brasileira com um mínimo de imparcialidade, despido das modalidades de
acirramento convenientemente em voga, mais que depressa percebe a que (ou a
quem) servem determinados movimentos que ora ela assume. Deixe-se o olhar,
todavia, para olhos mais treinados, como os da História, e ocasiões mais
propícias, como o futuro. Lá, espera-se, todo o estrago feito por expedientes
mal-intencionados como esse venha à tona. Oxalá haja meios de repará-lo.
O que alivia é que tudo tem a sua razão de ser.
Não bastando o insulto, o ranço, o rótulo, o viés, para enfatizar seu ponto de
vista vanguardeiro e modernoso sobre o referido estrato social paulista,
cunharam a expressão "classe mérdia". Decididamente, não surpreende.
Conservador ou progressista, alienado ou crítico, uma verdade fisiológica une
todos os brasileiros, do Oiapoque ao... Chuí, digamos assim: a fonte dos excrementos.
"Mérdia" só poderia mesmo sair de um...
Um comentário:
E a gente bem sabe de onde sai a "mérdia"...
Já disse que está muito chato viver nesse século, em meio a "intelectualidade googliana", tão perfeita, tão moralista, tão imediata...
Margareth
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