quarta-feira, 6 de abril de 2016

Isso

 
Vivo simplesmente. Poucos artifícios. Como o que há no prato, respiro o ar que me vem, respondo a quem me pergunta. Mil defeitos ostento, outros mil oculto, vultos, no impenetrável núcleo das selvas intestinas. Entre feras e ribanceiras, dois mil, portanto: nenhum, no entanto, que me reflita como não sou.
 
Sou isso. Em constante mudança, em desejável mudança. Por mim, pelos que me amam, pelas circunstâncias. Nada mais tolo que não mudar. Nada mais egoísta que se declarar impassível de modificações, como se gostar fosse um ato unilateral e incondicional de confirmação.
 
Com toda a mudança, ainda assim, sou isso. Continuo isso. Nem mais nem menos. Não digo o que não sinto, não procuro o que não me toca, não me aproximo do que não quero perto, não me arrependo do que me encanta. O que pareço aos olhos dos outros, não sei. Desejo, de coração, que o melhor, o mais verdadeiro em relação àquilo que penso de minhas próprias escolhas. Não posso, porém, controlar. Não quereria controlar. Não me compete. Apenas reitero: não digo o que não sinto, não procuro o que não me toca. Se falo que é bonito, é porque vejo beleza. Se escrevo que sinto falta, é porque tenho saudade. Pouco valor tem meu juízo de caráter, meu fascínio, meu sentimento, tudo isso é verdade. Muita gente enxerga melhor, mais nítido e longe que eu, com meu grau e meio de miopia. Mas meu olhar é meu olhar, e ele não sabe mentir. 
 
Ele vê que há os que pedem sinceridade, mas não a aguentam. Os que clamam por demonstrações de amor, mas logo se entendiam. Os que almejam ser compreendidos, em vez de julgados, mas depressa acusam a falta do aguilhão da clava alheia. Tão flagrantes contradições, que não haveria linha para fiar tanto tecido.
 
Eu não peço nada. Não clamo nada. Não almejo mais que um filete de água que desafie a impostura da ravina. Mas reconheço que é uma opção lógica. Pode mesmo se tornar um bom negócio nos balcões propícios. Lucrativo e piedoso, dependendo das cartas lançadas. Não para mim. Com todo o respeito de quem nada postula, com toda a pompa de quem tudo teme, o jogo das aparências não me interessa. É possível ser polido, diplomático, gentil e respeitoso sem dele participar. Mais que possível: é desejável; é cristalino; é urgente.
 
E digo o porquê: prefiro ser bobo a ser falso; ingênuo a esperto; iludido a ilusionista. Pois a ilusão, que às vezes fere; que às vezes caçoa, no espelho, da nossa cara de tacho; que às vezes magoa como jamais deveria magoar-se um ser humano... A ilusão vale mais, muito mais que a presunçosa, efêmera glória de dominar um truque.
 

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