sexta-feira, 8 de abril de 2016

Desimportante


Um professor da faculdade apresentava, no telão, as pérolas produzidas pelos alunos em suas provas. Transformava, assim, a tensão da divulgação das notas em um momento descontraído.

Uma vez, julgando encontrar um erro gramatical evidente, sublinhou, como uma dessas pérolas, a palavra "desimportante", utilizada por desavisado estudante em uma de suas respostas. Na época, não sabia que a palavra existia, de modo que, apesar de desconfiado, acreditei que, de fato, algum erro havia-se cometido.

Uma pulga atrás da orelha, porém, levou-me, anos mais tarde, a sanar a dúvida. Sim, a palavra "desimportante" consta nos dicionários. É um pouco feia, soa mal, mas existe. Apenas não é utilizada com frequência. Seja quem for o autor da pérola, pois, fique redimido: você não estava equivocado(a).

O que a pulga não me contou (nem o faria, por bioquímica lealdade) é que o sangue que ela haveria de extrair de meu pobre lóbulo era também desimportante. Que, tão depressa eu decifrasse esse enigma sem esfinge, perceberia que a palavra feia, a palavra torta, a palavra da qual, com razão, todos riram na sala de aula, era aquela que mais bem se ajustava ao rastro que eu ia deixando. Pegadas desimportantes, marcos desimportantes, metas desimportantes. Lágrimas, pontadas, receios, contenções, cabimentos desimportantes. A própria desimportância desimportante, parada como um rio podre, banal como um bolo de supermercado, em seu completo alheamento; paliada por canções dulcíssimas, por ideias geniais, por números impossíveis que, confortando-a, mais a corroboram, em sua ânsia de expressar o que não há, o que não é.

Constatar-se desimportante; perceber que todos os signos, todas as memórias, tudo de mais sagrado que plantamos, colhemos e cuidamos pode nada significar; intuir, ainda que por um instante, que, no revolver das gavetas, o afã será por esvaziá-las, não conhecê-las; descobrir que ninguém quer seus brinquedos velhos, seus livros amarelos, suas palavras sem pilha, é algo com que não se sabe lidar. Com que a mais serena têmpera deixa-se perturbar. O maior baque, talvez, da existência da alma.

Daí, pois, a importância de reconhecer. De mostrar. De falar. De brigar, até, se linguagem mais branda não souber manejar. Reconhecer, mostrar, falar o quê? Qualquer coisa. Tudo. Quanto quiser. O mais simples detalhe, a  mais despretensiosa observação. A indiferença inerente à condição vital só é superada em crueldade pela indiferença que se impinge voluntariamente ao semelhante, como ato de rancor ou expressão displicente de desdém.

Em palavras mais cruas: mande-me à merda, mas não me deixe aqui no porto, acenando o lenço gasto aos fantasmas do naufrágio.
 

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