sábado, 18 de agosto de 2018

Erro


Talvez seja um erro tentar entender com a razão o que dela se dissocia por sua mesma natureza. Vete-se o talvez, aliás: dite-se e carimbe-se que sim, que é engano dos mais imperiais, como os tropeços dos primeiros passos e o engasgo das primeiras sílabas.

De equívocos tais, boa parte dos desencontros entre fato e expectativa, doação e justiça. Precisamente porque não há fatos nas emoções, não há portos seguros ou âncoras neste zarpar desgovernado de quem desbrava os vagalhões da esperança. E porque a justiça passa longe dos sentimentos (não de todos, acho, porque trabalho para que os meus assim não trabalhem, supremamente destoantes do espírito das leis vitais, porém de muitos). Que justiça derivar de uns olhos que guardem qualquer luz misteriosa ou de uma voz que, apesar de boquirrota, soe entranhadamente familiar?

Tudo isso conquanto, descontadas as fascinações, das fuinhas traiçoeiras às de rara felicidade, linhas há em que se não deve pisar. Uma vez bagunçadas, não retornam ao pontilhado original, pondo em xeque a própria essência da brincadeira. E eu já vi passos tortos demais por aí, para me calar.

E eu me calo.

Não devia. Desde a primeira vez, é provável que adequado seria rebelião. Adequado seria falar tudo que me andava pelo sangue, tudo que me distinguia dos inúmeros répteis vitoriosos, a se jactar, de esgueira, pelos cantos, na falsa humildade (ou seria umidade?) das sombras. Adequado seria gargalhar quantas vezes fosse necessário, quantas me desse na telha, mas aí viriam as provas, os boletins, a recuperação, e também é adequado ser o aluno magnífico, que causa inveja não pelo esforço desmedido com que se aplica nas tarefas, mas por fazê-las parecer fáceis demais.

Ô, moça, ele não presta! Ele não ouve. Ele debocha do seu coração de isopor.
Ô, moça, você se encanta com as bolhas que ele assopra, as bolhas estouram, voam para longe, são incrivelmente intransparentes.
Ô, moça, tu me ignoras, asno que te carrega.

Foi assim desde o começo. O meu lanche vinha embrulhado no papel alumínio, um pãozinho simples, amanhecido, ela não parava de olhar para o gigante saco de salgadinhos alaranjados, o CD do Iron Maiden levemente arranhado, a atitude preguiçosa e não fingida do projeto de músico (ele era, efetivamente, um grande preguiçoso, até para trocar de nota era preguiçoso, quanto não seria para reparar as melodias que realmente tocavam no peito?).

Foi assim muitos anos depois, quando as singelas rosas foram trocadas por um capim alucinógeno, os piqueniques por coquetéis com janotas empolgantes. Sempre me perguntei onde errei, ultimamente o que me pergunto é onde acertei, afinal, em retrospectiva, tudo parece um erro, exatamente como no começo, um erro tentar entender com a razão, e daí se eu tiver mesmo razão, quem liga?

Sempre me perguntei, sempre me perguntarei. A propósito, que horas são? Em que século vivemos? Por que a mensagem vem sem texto, sem nexo, vem como um barulhinho de alarme que rasga o tecido da noite, fazendo os vizinhos despertarem de seus sonhos mais bonitos?

Pisou na linha!
Nem percebeu.
Só eu estava olhando, café-com-leite.
Eu e minhas regras.
E algumas rugas.

E fugas.

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