sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Núcleo


Algumas pessoas manifestaram estranheza quando eu disse que, de todas as matérias já cursadas, na vida, como aluno, A Célula, do curso de medicina, tinha-me sido a mais marcante. Afinal, pelo próprio caráter introdutório de que se revestia, era raro que alguém se apaixonasse, de maneira fulminante, pela disciplina.

Claro que boa parte deste meu xodó pela biologia celular se deve por considerações sentimentais, atinentes ao período em si e, especialmente, aos três anos subsequentes, que me dispenso comentar, patentes que são em boa parte do que, ainda hoje, exsuda de meus textos. No entanto, mais que mitos e ilusões de um jardim perdido (tanto quanto pedido, no oratório de cada anoitecer), o que me arrebatou no estudo das células foi a semelhança de seu funcionamento com o que, sem saber, o ser humano projetou em sua magnífica obra de transformação do mundo. Os meios de transporte, as linhas de transmissão, a produção e o armazenamento de energia, a ciência da engenharia, tudo isto existe e trabalha, à perfeição, no interior de cada célula. Os mais complexos cálculos daqui de fora, que exigiram milênios de genial saber acumulado para se viabilizarem, estão resolvidos, infinitamente, dentro de nós.

Isolado pela carioteca, o núcleo, centro de inteligência, comanda a vida intracelular e a vida, como um todo. Grandes moléculas só cruzam a fronteira se reconhecidas, através de complexos de poros e sinais específicos de localização. O ambiente nuclear equivale, grosso modo, ao que de mais íntimo guardamos, como pessoas. Nosso último reduto, a que ninguém desautorizado tem acesso.

Estou certo de que, na época, não pensava assim. Com o tempo, contudo, fui percebendo que, disso também, era inevitável extrair uma clara analogia. Uma semelhança que tem a ver diretamente com a pessoa em que me tornei – entre outras razões, por haver feito parte de uma turma que, por doze semanas de sua trajetória, estudou A Célula. Uma imagem que, a rigor, mostrava-me a face do espelho de minhas buscas mais profundas: o núcleo.

Na escrita, nos relacionamentos, nas esperanças, até nos mais frustrantes desastres, o grande horizonte do meu olhar sempre foi o núcleo. Para lá das escarpas políticas, dos conflitos fundiários por cacos de vidro, das inflamatórias diversidades de astuto marketing pessoal, das absurdas máscaras necessárias para sustentar o espetáculo da convivência em sociedade, o que me importa, inspira e também dói, é o lado de lá da carioteca. Quantas noites passei, quantos suores verti, procurando, ora no escuro, ora ofuscado, esta pequena cidadela! Não para invadi-la, não para cobiçá-la, não mesmo, sequer, para lhe insinuar qualquer direito de ingresso.

Para contemplá-la, apenas. Para render tributo a sua beleza eremita. Para, se muito, passar um bilhete por baixo da porta, declinando-lhe o meu mais sincero respeito.

Os medos, os desejos, as mágoas, o amor. O poço em que todas estas forças se encontram e se enfrentam, puxando para as profundezas ou para a luz, quando não ambas. Que importa, diante disso, a cor das paredes, o tipo de pedra, o lado da rosa-dos-ventos para o qual se vira o frontispício?

O núcleo. Aceitar que eu, citoplasma, nunca poderei conhecê-lo e, ao mesmo tempo, amá-lo, como se fôssemos uma única célula. 

Porque é o que somos.

Nenhum comentário: