quinta-feira, 12 de março de 2009

Confesso, é ingênuo


Engraçado é como o ser humano se vê acuado ao lidar com uma situação que, de tão simples, deixa-o, todavia, deveras enervado: enxergar pelos olhos do outro. Dir-se-á que é impossível, infactível, intangível à razão sentir no peito o alheio coração, mas não é, não. E é fácil de provar. Hoje debateram sobre a situação da Faixa de Gaza dois eminentes professores das ciências humanas e jurídicas - um de procedência israelita e outro de ascendência árabe. Munidos de argumentos consistentes, a certo grau irrefutáveis - tamanha sua lucidez e objetividade  deixaram, ao final da conferência, uma pergunta chave, senão em todos, pelo menos em minha cabeça: como podem dois lados historicamente antagônicos, vetores opostos e, por tal, anulando-se um ao outro, ostentarem, cada qual, verdades tão verdadeiras? Como podem duas versões tão destoantes, tão mutuamente aniquilantes, explicarem o mesmo fato e se manterem vivas, coerentes, plausíveis, se o fato, em si, é um só?

Um só? Será que existe, em essência, um só fato? Existe fato onde há pessoas?

Alertou o palestrante de origem árabe, ao lidar com uma afirmação acerca do caráter 'terrorista' do Hamas, sobre os perigos de chamar com uma palavra assim feroz qualquer pessoa, homem-bomba ou piloto de caça em meio ao conflito. "Chamar alguém de 'terrorista' dá a prerrogativa para matá-lo, para humilhá-lo, para ignorar que ele, ainda ser humano, goza, em tese, dos mesmos direitos humanos das vítimas potenciais de seu futuro ato. Dá a prerrogativa de crer que, sendo ele 'terrorista', são também 'terroristas' seus familiares, seus amigos, seus vizinhos. E assim se explode toda uma comunidade, com as crianças, as mulheres, os animais, os civis desavisados. E a carne que voa é a mesma, seja a bomba um punhado de pólvora envolto em PVC ou o artefato teleguiado eletronicamente pelos dedos do soldado."

A fala não foi exatamente essa, mas quase, e dela se pode muito bem inferir que, sendo terror, numa definição livre e não-acadêmica, o estado de ameaça constante à integridade física, à vida, etc., sem que se esteja em estado franco de conflito, não há diferença entre o medo que assombra o israelense, quanto aos foguetes do Hamas, e o medo dos palestinos com o ruído funesto das bombas caindo. Como se pode muito bem concluir que, não sendo a vida da alçada da Aritmética, morto um ou mortos mil, a dor é exatamente a mesma. É evidente que, juridicamente, historicamente, politicamente, há muitas outras implicações importantes, que vão desde a assimetria da reação israelense, com suas horrendas conseqüências para os palestinos que estão à margem de toda a confusão, à inflexível posição do Hamas em certos aspectos, aos interesses de ambos os lados em que não cesse a desgraça, etc. Isto, entretanto, não vem ao caso.

Vem ao caso que, longe de almejar reduzir conflito de tal magnitude a ponderações assim ingênuas, qualquer esboço, por mínimo que seja, de contorno do problema, passa por esta idéia tola de olhar a partir dos olhos do outro. De perceber que certas coisas não se mensuram e, mais além, certas coisas são universais: dor, medo, esperança, angústia, pele, pulso, sangue, lágrimas... Vida. Qualquer esboço de contorno do problema passa pela atitude amistosa que os dois debatedores, fiéis a suas crenças talvez até mais que aqueles que se digladiam na Terra Santa, esses dois, ao olhar para o outro, enxergam-se, um pouco, dentro deste outro. E, ainda que não consigam cumprir, por inteiro, tamanho desafio, esforçam-se para compreender as razões deste outro. Para pensar, um instante que seja, como seria a vida do lado de lá do muro, detrás de inúmeros cadeados e restrições.

Como seria ficar para sempre trancafiado, sem nem direito a advogado...

Confesso, é ingênuo.

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