sábado, 21 de março de 2020

SUS


Nos últimos tempos, muitos pronunciamentos pipocaram nas redes sociais sobre a importância de se defender o nosso sistema público de saúde. Como brasileiro que sou, além de ex-aluno de medicina, trata-se de um tema que me interessa bastante. Faz-me refletir sobre a seguinte questão: exaltar o SUS em gritos de guerra corresponde, efetivamente, a defendê-lo?

Consagrada pela Constituição Federal de 1988 e formalizada por lei em 1990, a noção de saúde pública como dever do Estado e direito do cidadão encontra-se há três décadas em vigor. Consiste, penso eu, no maior e mais importante investimento social do Brasil. Afinal, ao contrário de outras iniciativas governamentais, de caráter assistencial-clientelista, em que o beneficiário se vê reduzido a uma espécie de súdito do poder central (com drásticas implicações políticas e até democráticas), o acesso ao SUS dá-se por uma lógica completamente diferente de relação entre poder público e sociedade, marcada por sua natureza impessoal e universalista.

Bastante criticado por suas insuficiências e debilidades, o SUS deveria, sim, ser reconhecido, de forma muito mais ampla, pelos benefícios que produz à população brasileira. O simples fato de conseguir manter as portas abertas, em um país com as nossas dimensões e os nossos problemas, consiste em formidável feito organizacional, cujo mérito me parece ser integralmente devido a seus bravos trabalhadores. Qualquer pessoa sabe os desafios que tais profissionais (todos eles) vêm enfrentando, mesmo nas praças mais desenvolvidas do Brasil: dificuldades salariais, escassez de insumos, superlotação, violência, etc.

Se esta, contudo, é uma realidade vigente desde a sua criação, com um marcado antagonismo entre a incúria dos governos, de um lado, e a dedicação heroica de profissionais da saúde, de outro, será o súbito impulso virtual em defesa do SUS um verdadeiro e espontâneo convite à reflexão, motivado pela epidemia do coronavírus, ou mero atalho para ringues em que se encetam outros gládios?

Admitindo-se que se trate do primeiro caso, uma série de indagações cruciais vêm à mente:

Após três décadas de sua concepção, será que o SUS se encontra no patamar em que verdadeiramente poderia estar, a despeito das naturais dificuldades de um país pobre como o Brasil?

Será que os sucessivos escândalos de corrupção na área da saúde pública não desviaram recursos suficientes para que tal patamar fosse atingido?

Será que a ótima relação de executivos de empresas de saúde privada com políticos de proa, ilustrada por episódios como o de um ex-presidente da República frequentando a casa de praia e usando os jatinhos do maior acionista do setor, tem a ver com as facilidades inúmeras desfrutadas por tais entidades?

Será que se esses planos de saúde praticassem preços minimamente honestos, mais pessoas não os contratariam, diminuindo o universo de pacientes atendidos exclusivamente pelo SUS?

Será que o "Social" da sigla BNDES não justificaria investimentos em saúde muito mais importantes que outras escolhas feitas pela instituição, dentro e fora de nosso território?

Será que o bilionário lucro auferido em cada uma dessas operações duvidosas, por políticos e empresários cuja identidade nada tem de duvidosa, teria aumentado o número de leitos de UTI da rede pública, cuja exiguidade assombra os prognósticos atuais, em face da epidemia?

Será que se parlamentares usassem mais as suas emendas para a área da saúde, pequenas obras em eterno andamento não estariam prontas?

Será que se mais verbas de comunicação oficial fossem direcionadas para campanhas de saúde pública e menos para a promoção de interesses partidários, os próprios cidadãos não utilizariam melhor o SUS, ajudando a descongestioná-lo e, assim, prestar melhores serviços?

Será que a dengue, o zika, o sarampo, a sífilis, entre várias outras doenças evitáveis com prevenção, não contribuem, diariamente, para agravar deficiências do sistema?

Será que a violência assustadora do país não gera sobrecarga nos hospitais?

Será que a imprensa cumpre o seu papel fiscalizador nesta área fulcral, em que tanto a sua atuação faria diferença?

Será, por fim, que a energia dissipada nos gládios outros, a que me referi acima, não estaria melhor empregada, de 1988 até hoje, em evitar que este inquérito precisasse existir?

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