domingo, 22 de março de 2020

Movimentos


Há alguns dias, uma pessoa que conheço foi levada de casa na ambulância.

Não sou próximo dela, em termos de relação particular; não penso, em absoluto, da mesma forma que ela, adepta de uma visão muito mais à esquerda e mais militante do que a minha. 

Ao ver o reflexo das sirenes, contudo, nada disso me passou pela cabeça. Qual a importância de que não sejamos amigos ou de que não compartilhemos de umas poucas opiniões sobre umas poucas questões de um tempo e lugar igualmente poucos, diante do vasto mistério da vida? Naquele instante, ela era um corpo imerso na luz de uma ambulância, eu era sombra detrás de uma janela.

Em dias difíceis, dias de notícias ruins e de profunda impotência, a maior violência que se pode cometer contra uma alma em dor é cavar o abismo que vigora entre ela e as demais. É forçar a porteira de seu silêncio reparador com gritos histéricos e supérfluas imprecações. Um sofrimento que, em sã emoção, não se deseja a ninguém.

Por maior o cuidado, entretanto, todos estamos sujeitos, por humanos, a fazê-lo. O que não nos impede de lembrar que, em meio à euforia e o ódio das horas comuns, as ambulâncias estacionam na frente das casas, cortinas balouçam mesmo na ausência do vento, e são estes movimentos, não outros, os que nos fazem respirar.

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