sexta-feira, 6 de julho de 2018

Passou


Não era costume alguém parar assim, no meio da ponte. A gente em trânsito reclamava, a calçada era estreita, atrapalhava o fluxo.

– Que fluxo para mim? – caberia protestar ao homem das muletas, que não podia andar senão em lenta marcha, com esforço duplo de dor e equilíbrio. Mas não, o homem das muletas não protestava, o homem das muletas só se preocupava com o sol se pondo, com o rio de ouro no lugar do rio pútrido, a se arrastar lá embaixo, como se cruzasse selvas mitológicas.

Nem ligava para o cheiro que emanava das águas infectas, para o barulho sem fim dos carros e seus vômitos monocarbônicos, para a histeria da política e do futebol. Só o que via era a trivialidade do crepúsculo, da cena que se repete, diariamente, desde que a estrela é estrela e o homem é homem.

Mas ele não era qualquer homem, era o homem das muletas, o homem que poderia se jogar da ponte ou oferecer biribinhas aos transeuntes, que o interesse provocado seria o mesmo, as pessoas passariam, o rio passaria, a tarde passaria, eu passaria.

E passei.

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