segunda-feira, 9 de julho de 2018

Cobranças


Sempre é uma palavra traiçoeira, porque impossível de garantir. Uso-a, todavia, como licença poética, para dizer que sempre me senti cobrado a manter os pés na realidade. Uma cobrança sem rosto, sem nome, confusa como os vultos que se esgueiram nas zonas fronteiriças entre a espera e a ação.

Sempre, também, me rebelei contra tal ordem, embora, de rebelde, tenha, quando muito, o cabelo quando acordo. Insurjo-me porque, na profundeza das horas sozinhas, as poucas horas verdadeiramente minhas, sei que a minha melhor versão, a versão em que me salvo, é a versão do que imagino. A versão na qual não preciso, absolutamente, preocupar-me com as restrições, porque tudo posso superar: meus medos, meus modos, minhas manias entrincheiradas, a propensão a crer que não vale a pena ou já passou o tempo.

É um viver irreal, admito, mas longe de falso e perto de pleno. Um sonho manco, quem sabe, mas, ainda assim, desejo movente. Força que abre caminho.

Nele, as noites são longas, os dias têm música, as mais francas fragilidades de uma alma desorientada desabrocham como os botões de opulenta primavera. De uma estação que começa, termina, renova, surpreende e deixa saudade, mas também rastro, álbuns, fotografias nas quais se reconhece o lustro de uma época especial, a que se pretende, lá na frente, por estranha e magistral contradição, regressar.

Nele, planícies alagadas vêm à tona e esclarecem o mapa dos geologistas, dando rumo à história sem sentido das camadas do terreno.

Nele, os dramas são suaves, dissolvem-se no vinho, na dança, na chama de olhares que se chamam e se somam, mesmo quando nunca mais se vejam.

Nele, mesmo os mais severos desentendimentos compreendem que ainda há tempo, ainda é tempo, loiros, negros, ruivos ou castanhos, os fios todos acabam brancos, as mãos enrugadas, e ao se encontrarem, já não importam cor e textura, a carícia não envelhece, o carinho é o ato mais próximo da eternidade, antídoto das cobranças, parâmetro das danças que os pés, ancorados na realidade ou nos cometas, arriscam quando ninguém está olhando.

Nele, não se pergunta como, mas quando.

Quando?

Nenhum comentário: