terça-feira, 3 de julho de 2018

Boas vidas


Eu estava de carona no carro e havia colegas no ponto de ônibus. Ela dirigia e, avistando-os, perguntou-me se não convinha parar e pegá-los.

– Melhor, né?

Dizer que me agradou a ideia seria mentira das graúdas. Como não minto, ao menos não nestas verdades fúteis de relatório, confirmo que achei péssima a iminência de dividir o veículo e, com ele, a companhia. Melhor o cacete! Mais gente pra quê?

Pouco podia, no entanto, contra a decisão. Não tanto por não ser dono do carro, nem pelo caráter retórico da pergunta. Antes pela nulidade que, hoje percebo, era eu na época, especialmente para ela, para os colegas do ponto, para as autoridades acadêmicas e o caminho que, casualmente, dividíamos, empoeirados.

Para não ficar sem dizer palavra, como um espantalho de vocálicas paragens, lembrei-lhe, logo após ela buzinar aos amigos, que bem se poderia reproduzir uma cena típica de comédia italiana. Acabara de ver algo igual no filme "Os boas vidas", com Alberto Sordi: dois tipos acenavam para os trabalhadores cansados, que esperavam a condução; fingiam encostar a "macchina", a fim de lhes prover carona; arrancavam a toda velocidade, dando uma banana aos iludidos operários, que espumavam de raiva com o truque pregado.

Lembrei-lhe e, antes, houvesse esquecido, visto que sua reação infligiu-me uma das mais profundas revelações de solidão que jamais viria a conhecer em vida. Não apenas o sentido humorístico da cena do filme, que eu me esforçava em realçar, não foi compreendido, como, olhando-me como a um alienígena, ela me fez perceber que eu não tinha a menor chance de me aproximar, dela ou de qualquer terráqueo, enquanto visse graça em antigos filmes italianos.

Embora morasse mais perto do ponto de ônibus que todos os amigos caroneiros, fui o último a ser entregue em casa, aquele dia. Apesar disso, ou por causa disso, praticamente nada mais disse em todo o caminho, exceto nos minutos finais da imensa volta que demos pelo bairro universitário, quando o carro já se encontrava na avenida em cuja esquina se encontrava meu pequeno apartamento. Devo ter dito palavras banais, o que me era altamente custoso, aliás, uma vez que nada havia de banal em estar com ela, em projetar sua companhia por dias e noites a fio, como então o fazia, dias e noites que seriam tudo, menos banais.

Não faço ideia se meu abatimento ficou patente, se me esforcei ou não para contê-lo em frente às outras pessoas que estavam no carro, se ele seria minimamente entendido, na época ou hoje, pelos colegas e por ela. Não faço ideia se a revelação de solidão de que falei era um destino, uma flecha, uma piada.

Sei que, por linhas tortas, conheci-me melhor aquela tarde. E, embora uma voz irritante diga que mudei irremediavelmente naqueles três, quatro quilômetros percorridos, por ter sentido na pele a distância entre o ideal e a realidade, continuo, uma década depois, vendo meus filmes, rindo de suas cenas, conquanto, não raras vezes, o motor do carro falhe e este Alberto Sordi aqui se estrepe, sua brincadeira de fuga virando um pega-pra-capar.

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